18 de janeiro de 2012.
NOTA DA ATY GUASU À IMPRENSA – AOS DOIS MESES DO ATAQUE AO GUAIVIRY
O objetivo desta nota das lideranças da Grande Assembleia Guarani e Kaiowá Aty Guasu é explicitar em detalhe e socializar a história e trajetória de vida do rezador ñanderu Nisio Gomes.
Nossa iniciativa tem o sentido de reafirmar a grande honradez e dignidade de uma autoridade religiosa e espiritual de nosso povo, que vem sendo atacada de forma leviana ao longo das investigações sobre o ataque sofrido pelo grupo de Nísio, no Tekoha Guaiviry, em 18/11/11.
Assim, destacamos que, ao longo das últimas três décadas, na condição de rezador e protetor do território, vida e cultura sagrada guarani e kaiowá, Nisio Gomes participou de todas as grandes assembleias Aty Guasu, coordenando nossos rituais religiosos. Por essa razão, ele é bem conhecido tanto pelas autoridades federais como pelas lideranças
guarani e kaiowá de todas as aldeias do Cone Sul-MS.
A família extensa de Nisio Gomes é originária do território tekoha guasu Guaiviry. Ele nasceu no tekoha Guaiviry, casou-se com a também rezadora Odúlia Mendes, já falecida. Casado, foi expulso do Guaiviry em meados da década de 1970. Nisio tem dois filhos, duas filhas e vários netos(as). Analfabeto, Nísio tampouco sabia falar bem o português, entendia com dificuldade a língua portuguesa. No último ano, ele se sentia doente, portanto tomava remédios caseiros diversos.
Não comia as comidas salgadas e nem doces. Ao longo das últimas três décadas, Nisio Gomes foi realizador do
importante ritual de batismo de crianças, que é um ritual de assentamento de nome/alma no corpo das crianças – mitã mongarai –, realizado de 15 em 15 dias. Nisio era portador do instrumento sagrado xiru marangatu e de vários cantos-reza específicos para a realização de ritual de batismo. Ele também era um grande conhecedor de plantas
medicinais.
Como já dito, há três décadas, Nisio, além de reivindicar o território antigo tekoha Guaiviry, passou a ocupar a importante função de liderança religiosa ñanderu. O rezador Nisio pregava na grande assembleia aty guasu que “nós lideranças guarani-kaiowá que lutamos pela recuperação dos nossos territórios antigos tekoha guasu nunca
devemos desistir de lutar pelo nosso tekoha e jamais abandonar nossos familiares e companheiros de luta”. “Até devemos morrer, se for preciso pelo nosso tekoha guasu, para salvar muitas vidas e o futuro de nossas crianças, mas abandonar o tekoha nunca, porque nós pertencemos ao nosso tekoha guasu”. Essas são algumas frases que o
rezador Nisio falava com frequência.
É importante destacar que o rezador/líder religioso, na cultura do povo Guarani-Kaiowá, é um cargo vital, irrenunciável e imutável. Conforme o regimento determinante dos rezadores, o rezador não deve abandonar o território tradicional, nem os instrumentos sagrados xiru marangatu, nem deve se afastar dos seus auxiliares, aprendizes, parentes, principalmente dos filhos (as), netos (as). Isso porque o cargo de rezador é o suporte sagrado e protetor vital do território e dos integrantes do povo Guarani-Kaiowá.
No seio da família extensa e na grande assembleia aty guasu, o rezador é um conselheiro religioso que prega o bom viver sagrado indígena, possuindo o poder educativo, e sua autoridade religiosa é reconhecida por ser um idoso, rezador e protetor espiritual de várias famílias extensas pertencentes aos diversos tekoha guasu, territórios indígenas
do Cone Sul de MS.
Baseado nesse regimento rigoroso dos rezadores Guarani e Kaiowá, o rezador Nisio Gomes, com vida, não deveria abandonar o território antigo que ele reocupou, não deveria deixar os instrumentos sagrados xiru marangatu, auxiliares, aprendizes, parentes, sobretudo os filhos (as), netos (as). Porém, o território antigo reocupado de Guaiviry, os filhos (as), netos (os), parentes foram abandonados por Nisio Gomes no dia 18/11/2011. Por quê?? Sem dúvida, o rezador Nisio abandonou já sem vida o território tradicional tekoha Guaiviry reocupado, pelo qual lutou três décadas. Só sem vida ele deixaria o instrumento sagrado xiru marangatu e seus familiares em tekoha Guaiviry. Por fim, Nisio não participou mais da última aty guasu por um único motivo: porque o rezador Nisio foi massacrado e morto pelos pistoleiros das fazendas no dia 18/11/2011.
No dia em que se completam dois meses desse ataque, nós, do povo Kaiowá e Guarani, continuamos sem respostas para nossa angústia. Queremos que a Justiça mande prender os responsáveis pelo ataque e que as autoridades se empenhem realmente para que a família de Nísio possa reaver o corpo que foi levado pelos criminosos. É preciso que haja punição exemplar para os culpados por esse crime hediondo, ou os povos indígenas continuarão com a impressão de que, no Brasil, a lei só vale para os ricos e brancos.
No último domingo, dia 15, um episódio demonstrou que a comunidade de Guaiviry continua correndo riscos e sofrendo ameaças. Um homem não indígena chegou ao local se identificando como funcionário de uma das
fazendas vizinhas à área, fazendo perguntas sobre a identidade das lideranças do local e ameaçando o grupo, dizendo que novos ataques de pistoleiros vão ocorrer. A comunidade prendeu o homem e acionou a Força Nacional e a Polícia Federal, que compareceram ao local e o detiveram para averiguações.
Se o Estado brasileiro não agir, tememos que o Guaiviry e outras comunidades guarani e kaiowá sofram mais violências. É urgente que o governo olhe para o Mato Grosso do Sul e resolva nossa situação. A situação de impunidade está gerando uma realidade revoltante: os pistoleiros não estão tendo mais vergonha de chegar a um acampamento em plena luz do dia para ameaçar as comunidades e matar lideranças.
Queremos JUSTIÇA. Queremos PUNIÇÃO para os culpados.
Conselho da Aty Guasu
Fonte: https://cimi.org.br/2012/01/33102/