Brasília-DF, 17 de agosto de 2017.

Das Lideranças Indígenas para a Advogada Geral da União

Carta dos Tupinambá e Pataxó (BA), Kaingang, Guarani e Xokleng (RS e SC) contra o Parecer 01/2017 da AGU

EXCELENTÍSSIMA SENHORA ADVOGADA GERAL DA UNIÃO, GRACE MENDONÇA

Ref. Parecer nº 01/2017 – GAB/CGU/AGU

Nós, lideranças indígenas Tupinambá e Pataxó da Bahia, Kaingang, Guarani e Xokleng do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, vimos respeitosamente até Vossa Excelência requerer o que segue:

Sabemos que a Advocacia Geral da União – AGU emitiu Parecer onde vincula toda a administração pública federal, direta e indireta, ao que teria o STF decidido na Pet. 3388/RR (caso Raposa Serra do Sol). Argumenta Vossa Excelência que se nós indígenas estivéssemos na data de 05 de outubro de 1988, data da promulgação da nossa Constituição, na posse da terra tradicional, teríamos direito sobre ela, do contrário, teríamos perdido os direitos territoriais.

É nesse sentido a ementa do Parecer:

  1. O Supremo Tribunal Federal, no acórdão proferido no julgamento da PET 3.388/RR, fixou as “salvaguardas institucionais às terras indígenas”, as quais constituem normas decorrentes da interpretação da Constituição e, portanto, devem ser seguidas em todos os processos de demarcação de terras indígenas.
  2. A Administração Pública Federal, direta e indireta, deve observar, respeitar e dar efetivo cumprimento, em todos os processos de demarcação de terras indígenas, às condições fixadas na decisão do Supremo Tribunal Federal na PET 3.388/RR, em consonância com o que também esclarecido e definido pelo Tribunal no acórdão proferido no julgamento dos Embargos de Declaração (PET-ED 3.388/RR).

Pretende a AGU, diante da leitura do Parecer nº 01/2017, que toda a administração pública federal, direta e indireta, obedeça ao julgado do caso Raposa, determinando sejam o marco temporal e as condicionantes ali fixadas, usados como parâmetro em todos os processos de demarcação de terras indígenas.

Com o devido respeito, a jurisprudência da Suprema Corte não foi adotada no Parecer nº 01/2017 assinado por Vossa Excelência1. Muito pelo contrário, está a enfrentar a jurisprudência sedimentada pelo STF quanto a nulidade de títulos incidentes sobre terras indígenas (§6º, art. 231 da CF/88), o alcance do território tradicional (§1º, art. 231 da CF/88) e ainda sobre a imprescritibilidade do direito territorial indígena (§4º, art. 231 da CF/88) e sua posse permanente (§2º, art. 231 da CF/88), bem como desconsidera as remoções forçadas, esbulhos, violências (§5º, art. 231 da CF/88) e a política nefasta do período de exceção contra os indígenas2.

Para que não paire nenhuma dúvida quanto ao aqui alegado, o ministro Luís Roberto Barroso, no julgado das Ações Civis Originárias 362 e 366, datado de 16 de agosto de 2017, esclareceu que a decisão no caso Raposa Serra do Sol em hipótese nenhuma se estende a outros casos de demarcação. Daí compreende-se a ofensa do Parecer exarado por Vossa Excelência à jurisprudência do STF e ao julgado na Pet. 3388/RR.

Esclareceu ainda, com os devidos acréscimos da ministra Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Luiz Edson Fachin e Alexandre de Morais, além do relator ministro Marco Aurélio Mello, o qual resgatou o indigenato e a consagração dos direitos indígenas desde o Alvará Régio de 1680, que a posse indígena não se perde quando das suas terras foram retirados sem sua expressão da vontade.

Vossa Excelência ainda menciona no Parecer de nº 01/2017 que o esbulho teria que se configurar, para efeitos da inexistência de perda da posse, por conflitos de fato que perdurassem até a data da promulgação da Carta de 1988 ou que nessa data houvesse uma ação judicial objetivando a posse do território tradicional. Esse fundamento restringe o direito constitucional indígena e é uma interpretação que afronta a jurisprudência consolidada pelo STF e a história de violências vivida pelos povos indígenas.

Primeiro, os índios eram tutelados até 05 de outubro de 1988 e por esse motivo, não tinham permissão da lei e do Estado para ingressar com ações judiciais. Depois, sob o jugo da ditadura militar, eram castigados, violentados e até mesmo mortos em função do Estado de exceção. Se ousassem voltar para o território de onde foram retirados a força, certo que seriam torturados e presos3. Isso não nos é novidade, basta fazer uma breve pesquisa nos Relatórios Figueiredo e da Comissão Nacional da Verdade para aferir maiores informações sobre a recente história de violências.

Mais uma vez, ministra, no julgado do dia 16/08/2017 ficou esclarecida essa pendência de interpretação constante da posição da AGU. Não há que falar em perda da posse indígena se houve retirada da comunidade do seu território sem sua expressa intenção ou vontade, como minuciosamente explicou o relator do Embargos de Declaração da Pet. 3388/RR, o ministro Luís Roberto Barroso. A perda só pode ocorrer se a comunidade abandonou suas terras por expressa intenção, o que poderia ser explicado unicamente pela ciência antropológica, o que ficou evidenciado pelo ministro Ricardo Lewandowski, acrescentando a importância hierárquica da antropologia para a demarcação das terras indígenas.

Desse modo, a perda do território de ocupação tradicional, nos termos do §1º do art. 231 da CF/88, não acontece se houve retirada forçada, mesmo que a remoção tenha se dado em passado distante:

Assim, ainda que algumas áreas abrangidas pela demarcação sejam ocupadas por não índios há muitas décadas, estando situadas em terras de posse indígena, o direito de seus ocupantes não poderá prevalecer sobre o direito dos índios” (fls. 812-3 – Pet. 3388/RR)4.

Doravante, o conceito de terra tradicional, quanto a intepretação do STF, é de que

São [aquelas] demarcadas para servir concretamente de habitação permanente os ambientes de habitação, os imprescindíveis habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e ainda aquelas que se revelarem necessárias à reprodução física e cultural de cada qual das comunidades étnico-indígenas, segundo seus usos, costumes e tradições (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios – Ementa da Pet. 3388/RR).

Garante ainda o relator dos Embargos de Declaração da Pet. 3388/RR que (…) o art. 231 da Constituição de 1988 “reconhece um direito insuscetível de prescrição aquisitiva […]”5.

Não fosse suficiente, nem mesmo no caso Raposa, nos termos pretendidos pela AGU, o marco temporal foi aplicado. Do contrário, caso aposta a tese, aquela terra indígena teria sido demarcada em ilhas e não de forma contínua. A demarcação que se seguiu anulou todas as posses e títulos incidentes sobre o território tradicional, o que lega ao Parecer nº 01/2017 da AGU a uma interpretação conflitante com o entendimento do julgado na Pet. 3338/RR.

Veja-se nos termos do julgado que posses de áreas datadas do início do século passado foram todas anuladas e, portando, de acordo com o acórdão da Pet. 3388/RR, nem mesmo o ano de 1934 recepcionaria a tese do marco temporal.

  1. (…). Sustenta [um dos autores da Pet. 3388/RR] que a fazenda [Guanabara] seria de ocupação privada desde 1918, tendo sido reconhecido o domínio particular por sentença proferida em ação discriminatória, transitada em julgado em 1983. Isso teria constado do Despacho nº 80/96, do Ministro de Estado da Justiça, e só poderia ter sido alterado caso tivesse sido apontada alguma nulidade.
  2. Não verifico [ministro Barroso – relator] qualquer vício quanto ao ponto, que foi expressa e claramente examinado no acórdão embargado. Já em sua ementa, o julgado destacou o caráter originário do direito dos índios, que preponderaria sobre quaisquer outros.

Com relação a essas áreas, cumpre ressaltar que as ocupações e domínios anteriores […] não prevalecem sobre o direito do índio à demarcação de suas terras, nos termos do § 6º do art. 231 da Constituição Federal […] pois o que somente cabe aos detentores privados dos títulos de propriedade é postular indenização pelas benfeitorias realizadas de boa-fé” (fls. 340-1– Pet. 3388/RR).

Nas palavras do relator, ministro Ayres Britto, “O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional (…). Donde a clara intelecção de que os artigos 231 e 232 da Constituição Federal constituem um completo estatuto jurídico da causa indígena” (Pet. 3388/RR).

Subsidiariamente, para demonstrar que o Parecer nº 01/2017/AGU conflita com a jurisprudência do STF e, especialmente, vai de encontro do julgado na Pet. 3388/RR, rompendo com o engate lógico da relação temporal que os indígenas tem com a terra, temos que:

Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia.

A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas (Pet. 3388/RR).

No MS nº 32.7096, de relatoria do ministro Dias Toffoli, a mesma visão de terras indígenas sobressai:

a dinâmica relacional desse grupo indígena com o Morro dos Cavalos [Guarani de Santa Catarina] não se dá apenas pela sua efetiva presença no local quando do advento da Constituição, mas sobretudo pela sua relação simbólica com a terra, da qual o grupo indígena muitas vezes se afastou pela presença dos colonizadores, sem contudo perder o vínculo com o que chama de mundo original (MS 32.709, Rel. Dias Toffoli).

E ainda, em recente julgado, a Corte Constitucional assim determinou quanto à decisão na Pet. 3388/RR:

O Plenário deste Tribunal, quanto ao alcance da decisão proferida na Pet 3.388/RR e a aplicação das condicionantes ali fixadas, firmou o entendimento no sentido de que “A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar”.

Portanto, está completamente descolada da jurisprudência da Corte o Parecer nº 01/2017 exarado por Vossa Excelência e assinado pela presidência da República. Mencionado conflito, explicitamente demonstrado no julgado de 16/08/2017, deve colocar a termo o pretendido pelo Executivo e respeitar o art. 231 e 232 da CF/88, bem como a Convenção 169 da OIT e as demais Declarações de Direitos Humanos e sobre Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas – ONU e da Organização dos Estados Americanos – OEA.

Pedimos encarecidamente, por fim, com o devido respeito, seja revogado imediatamente o Parecer de nº 01/2017 – GAB/CGU/AGU, eis que conflitante com a pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Atenciosamente.

 

Fonte: https://racismoambiental.net.br/2017/08/18/carta-dos-tupinamba-e-pataxo-ba-kaingang-guarani-e-xokleng-rs-e-sc-contra-o-parecer-012017-da-agu/

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