São Paulo, 02 de junho de 1987.

Da Comunidade Guarani do Rio Silveira para a presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)

Sra. 

Profa. Dra. Manuela Carneiro da Cunha 

DD Presidente da Associação Brasileira de Antropologia 

São Paulo SP

 

Senhora Presidente, 

Tem a presente a finalidade de trazer ao conhecimento da Associação Brasileira de Antropologia algumas questões concernantes à comunidade Guarani do Rio Silveira do Município de São Sebastião neste estado e solicitar da ABA um posicionamento público através da imprensa bem como formal nos processos judiciais em curso em São Sebastião e no processo administrativo de homologação da área que se encontra neste momento na consultoria Geral da República, tendo em vista o abaixo exposto:

  1. Nos processos 640/82 e 692/82 da Comarca de São Sebastião foi determinada perícia judicial cujo perito do juízo foi o Prof. Desidério Aytai, assistente técnico da FUNAI Profa. Regina Muller e assistente técnico da comunidade indígena a engenheira Maria Cecília Wey de Brito, esses dois assistentes técnicos concordaram “in totum” com o laudo do perito judicial. A parte contrária no prazo legal apresentou como seu assistente técnico o engenheiro Ivan Sallowiez, vindo mais tarde, expirado o prazo e em desacordo com a lei que só prevê a indicação de um assistente técnico por cada uma das partes indicar um segundo o padre José Vicente César apresentado como antropólogo. Este senhor que assumiu realizar trabalho em desacordo com a Lei e a favor dos interesses particulares do senhor Armando Peralta, foi à aldeia sem se fazer acompanhar do perito judicial como é de praxe, na companhia de representantes do grupo peralta, levando presentinhos e guloseimas sem desvendar seus verdadeiros propósitos. Por fim elaborou laudo divergente no qual em suma, nega as afirmações do perito judicial num trabalho claramente parcial contra os índios conforme se poderá comprovar da sua leitura. 
  2. Tendo em vista matéria publicada no Jornal do Estado de São Paulo de 19/4/87 intitulada “Guaranis querem o aldeamento do Rio Silveira homologado” o advogado do grupo Peralta utilizando-se do direito de resposta fez publicar no mesmo jornal em 25 de abril de 1987 considerações que atentam contra a verdade histórica e antropológica e que estão sustentadas em linhas gerais no trabalho sob encomenda feito pelo Padre José Vicente Cesar.
  3. Como é de conhecimento público a área Guarani do Rio Silveira foi objeto, como as demais do Estado de São Paulo, de apreciação pelo GT interministerial criado pelo decreto 8818/83 tendo por ele sido aprovada a demarcação já realizada pelo governo Montoro e encaminhada pela homologação presidencial com fundamento na imemorialidade, como é também de conhecimento público as pressões do grupo peralta junto ao executivo Federal fizeram com que esta seja a única das áreas Guarani Paulista que não alcançou a respectiva homologação presidencial.
  4. O Executivo Federal escuta-se em sua omissão na alegação de que a área encontra-se sub-judice além de vir agora a Consultoria da República incorporando argumentos dos Peralta/Vicente César de que os Guarani São invasores de terras particulares em São Paulo a partir de 1824.

Senhora Presidente, como se vê a antropologia do Padre Vicente César está pondo em risco a sorte do Povo Guarani em São Paulo, está a comprometer a própria categoria profissional ao se colocar aos serviços e interesses particulares contra os índios que afirma ser seu objeto de estudos, está a deturpar os documentos científicos e históricos notadamente o trabalho de Nimuendajú. Em razão do fato de Nimuendajú ter estudado as migrações Guarani do século passado afirmam Peralta/Vicente Cesar sem parcimônia que os Guarani são paraguaios, alienígenas e outras barbaridades.

Alfred Metraux falando sobre estas migrações estudadas por Nimuendajú assim expressa:

“Migrations des Tañyguá des Oguauíva et des Apapocúva (1820-1912).

“Les dernières migrations des Guarani ont’eu lieu à l’époque contemporânea.”(g.n.)… Elles ont eu pour historien Nimuendajú qui a José un rôle important dans leur dénoûment.” p.16 – Migrations historiques des tupi-guarani”, Librarie orientale et américaine, Maisonneuve Frères, editeurs, 1927.

O próprio Nimeundajú em “Los mitos de creación y de destruiccion del mundo” deixa claro que os três sub grupos ou bandos acima mencionados e que estudou não foram os primeiros a se deslocarem para o leste e nem os únicos que a época de seus estudos viviam tal processo migratório. Portanto é uma aberração histórica e científica ficar afirmando que os Guaranis já não viviam em terras paulistas desde antes da chegada dos europeus ou que estas não sejam suas terras tradicionais.

Em nota, logo nas primeiras páginas de sua obra acima referida, citando Recalde (Nimeundajú, ob. cit. p.32) está explícito que os Guaranis do século XVI ficaram conhecido pelo apelido de Kari’o, “Voz que designa a los senhores que tienen casa. Los apodos eran siempre inventados por los vecinos, que en este caso serian los tamoi de la Raia de Guanabara.”

Ora, se os Guarani da época da chegada dos europeus eram conhecidos como carijó, cujo nome receberam de seus vizinhos do Raia de Guanabara, como dizer que o território da Aldeia de São Sebastião não é um território Guarani imemorial?

Como todos sabemos além de seu trabalho de pesquisador Nimuendajú convencido de que os Guarani na costa não teriam possibilidade de sobreviver empreendeu trabalho de convencer muitos bandos a deixarem a costa e se fixarem nas reservas então criadas no interior do Estado por sua iniciativa.  

Apenas a título de exemplo vale fazer referência a uma passagem de sua obra na qual nos conta ter encontrado em 1912 a 13 km oeste de São Paulo um bando de guarani que seguia para a costa, fez a viagem com eles até a praia grande no litoral paulista convencendo-os depois a irem para uma das mencionadas reservas do interior do Estado. 

“Emprendimos el retorno, pero ya en San Pablo la gente se lamentaba amargamente de haber dejado la costa. No, decian, deberíamos haber hecho alli abajo las cosas de manera totalmente distinta; sobre todo, no teníamos takuara. Mejor regresemos inmediatamente al mar e intentemos de nuevo. Pasé harto trabajo hasta que, por fin, los tuve en la reserva de Araribá. Esta media docena de paraguayos me dieron más trabajo que los 150 Oguauiva. Llegados a la reserva, exigieron categoricamente que debía quedarme con ellos. Les prometi regresar en un mes, cumpliendo puntualmente mi palabra. Como me quedé sólo algunos días en la reserva y volvi a partir novamente, empaquetaron sus cosas y salieron de nuevo por el mundo, seguramente en dirección al mar. Nunca más he vuelto a saber de ellos. (gen.) ob. cit. p 127 

Tal citação tem somente o objetivo de deixar claro que os grupos estudados por Nimuendajú e que tornaram sua obra conhecida não eram os únicos que na época já se deslocavam pela costa paulista o que é dito pelo próprio Nimuendajú, isto porque Peralta/Vicente Cezar firmam todo o tempo que os grupos Guarani daquela época eram estes três e só estes três e que os Guarani do Rio Silveira não estando compreendidos num destes três estudados a área de Boracéia Barra do Una não pode ser reconhecida como área imemorial indígena. 

Na mesma pág. 127 continua Nimuendajú:

“No quiero cerrar este capítulo sin plantear una pregunta, que podrían responder personas más competentes: Estas migraciones de los Guaraní del siglo XIX son los últimos estertores de aquellas otras que llevaron a los Tupi-Guarani de la época del descubrimiento a sus asentamientos o a lo largo de la costa oriental;

A vista do tempo que se passou entre o que disse Nimuendajú e a data de hoje não é preciso ser competente para constatar que o processo migratório Guarani iniciado antes do século XVI perdura até hoje e que foram vãos os intentos de Nimuendajú de arrancar-lhes o objetivo secular que perdura até hoje de fixarem-se no litoral paulista.

Senhora presidente, tem a presente o objetivo de solicitar que a ABA desagrave os Guarani das afirmações feitas pelo Padre Vicente Cesar em seu relatório a esta anexado. No processo judicial tendo em vista o curriculum vitae que apresentou, sua condição de antropólogo-doutor e de padre primeiro presidente do CIMI tem feito com que suas afirmações recebam crédito, em segundo lugar tem o objetivo de solicitar que a ABA formalmente conteste a validade ética de um antropólogo nos seus conhecimentos e títulos a serviço de interesses particulares, desvirtuando fatos históricos para desapossar índios de terras constitucionalmente garantidas. Solicita-se pois que a própria ABA avalie o laudo do perito judicial Dr. Desidério Aytai e do Padre Vicente Cezar, publique sua crítica e a manifeste dentro deus membros, nos veículos de comunicação, no processo judicial, no processo administrativo junto a Consultoria da República e junto a própria Igreja Católica à qual se filia o antropólogo e que propugna pela defesa dos índios.

Solicita finalmente que tendo em vista a realidade histórica e atual, os documentos anexos e a matéria resposta do Sr. Sinésio de Sá publicada no Estado de São Paulo haja também pronunciamento desta honrada associação.

Sendo o que havia para o momento firmamo-nos atenciosamente

 

Comunidade Guarani do Rio Silveira  

 

Fonte: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/carta-aba-solicitando-posicionamento-publico-e-formal-nos-processos-judiciais-em

Original: 1987.06.02 Da Comunidade Guarani do Rio Silveira para a presidente da ABA

CARTAS RELACIONADAS