Casa do Índio, Gurupi, To, 02 de Junho de 1992.

Do povo Xerente para o Presidente da FUNAI

Exmo. Presidente da Fundação Nacional do Índio – FUNAI

 

A Nação Indígena Xerente, habitando a área Indigena Xerente, no município de Tocantínia – Estado do Tocantins, próximo à capital, Palmas, representada pelos seus líderes abaixo assinados e reunidos em Gurupi-To, na Casa do Índio, para tratar de assuntos importantes e urgentes que lhes afetam a existência, vêm, respeito semente perante o Sr Presidente requerer o devido apoio, conforme; as nossas considerações abaixo:  

A criação do novo Estado do Tocantins e consequentemente sua capital, Palmas, a apenas 50 quilômetros de nossa terra, como era de se esperar, tem nos criado sérios problemas, diante de seu desenvolvimento acelerado, que prejudicou profundamente nosso sistema de vida social, cultural e econômico. As três estradas que cortam a área alteraram o meio-ambiente, espantando o que restava de caça silvestre, os peixes também acabaram, assim como outras riquezas naturais que faziam parte de nossa sobrevivências.

Estamos com receio, pois o nosso sistema de vida está mudando rapidamente, nossos jovens sendo puxados para fora da Área, influenciados pelo “progresso” do branco. Novas doenças estão surgindo, novos problemas aparecem que não estamos conseguindo resolver, pois fogem da nossa cultura. 

O desenvolvimento do Estado do Tocantins não quer levar em conta que já estávamos aqui antes dos brancos chegaram, e que nosso povo precisa ser respeitado. Os projetos feitos para melhorar a vida dos brancos falam em barragens (projeto Brasil 2010), que inundarão boa parte de nossa terra, falam de estradas asfaltadas (já em andamento), em pontes e ferrovias (norte-sul) e outras grandes obras, que não tardarão por chegar.  Não temos como nos desenvolver as pressas, não temos dinheiro dos bancos e nem as máquinas dos brancos. Não queremos copiar o sistema de vida deles, que tem muita miséria, mas criarmos um desenvolvimento harmonioso que nos permita, como povo indígena, viver em paz com a sociedade nacional.

Vivemos hoje num impasse, pois além de não estarmos recebendo as vantagens do tal progresso, estamos sendo acusados preconceituosamente pela sociedade envolvente de estarmos impedindo o desenvolvimento da região. Isto é muito triste e doloroso.

Queremos relembrar nosso passado, pois vivemos nessa região há centenas de anos e já fomos uma grande nação. Chegamos às portas da extinção, pois, na década de 59 éramos 350 Índios. Hoje aumentamos e já somos 1500 pessoas e muito brevemente seremos o dobro. Desde já consideramos que nossa terra existente e demarcada já é pequena para o nosso sistema de vida, pois nossa terra não é uma fazenda de branco, mas o território de um povo, que deve sempre existir. 

Precisamos de apoio permanente para melhorar nossas condições de vida, sem precisarmos sair de nossa terra e irmos morar nas cidades, onde muitos brancos vivem pior do que o índio.

Nossas necessidades são muitas e para deixarmos de ser acusados de preguiçosos e imprestáveis, precisamos de apoio, mais do que a Funai tem nos oferecido.

Na área de Educação faltam escolas e professores competentes, bem como mobiliário necessário. Nossas escolas vão até o 4° ano e nossos filhos acabam indo estudar nas cidades, às vezes residindo lá fora, sem as condições necessárias de apoio.

Nossas enfermarias estão abandonadas, faltam profissionais. Não existe infraestrutura adequada. Faltam residências para funcionários e local apropriado para funcionamento das enfermarias. Faltam programas de assistência odontológica, médica e sanitária. Várias propostas dos governos a nós apresentadas não saem do papel, são somente promessas. 

Nossa principal dificuldade é a falta de meios básicos de subsistência. Precisamos melhorar nossa agricultura, pois não temos mais caça e pesca. Antigamente o que plantávamos dava para comer. Hoje nossas necessidades são outras, pois dependemos de produtos como bicicleta, rádio, roupas, utensílios e muitos outros bens que incorporamos em nossa vida. Para se ter uma idéia de como nossa produção agrícola se torna pequena, basta dizer que precisamos vender um saco de arroz para comprarmos cinco pilhas de lanternas.

Não temos maquinário agrícola em boas condições. Tem trator sem carreta, não existe nenhum veículo funcionando nas aldeias ou nos postos. São camionetas velhas que funcionavam a rodogás. Podemos até andar sem precisar de carro, mas não transportar produtos ou pessoas doentes por várias léguas de chão.

Para desenvolvermos projetos alternativos de produção de alimentos precisamos nos alimentar bem. Mais importante do que ferramentas (que são bens duráveis e acessíveis a todos) seria apoio permanente aos mutirões de roças coletivas, na forma do alimentação, o equivalente aos custeios agrícolas vigentes no País.

Não queremos apresentar uma lista de pedidos ao governo estadual, em caráter de indenização. Não estamos culpando também o governo estadual, que está procurando cumprir com seu trabalho e sua política de desenvolvimento. Estamos falando do Estado do Tocantins e do nosso futuro enquanto povo diferenciado, tradicionalmente perdedor ao longo da história brasileira.     

Queremos, senhor Presidente, que interceda junto aos governos municipais, estaduais e federais e, se preciso for, junto ao Ministério Público, para que não sejamos desrespeitados neste momento decisivo de nossas vidas. 

Estamos propondo planos de desenvolvimento sustentado a longo prazo, nos moldes de convênios já existentes em várias regiões do País, onde se caracteriza impactos ambientais e principalmente sociais junto a povos indígenas.

E que tais planos sejam feitos com a nossa participação efetiva, bem como da FUNAI conjuntamente, pois ela é nossa tutora e pode e deve nos acompanhar.  

Queremos finalmente, Sr. Presidente, lembrar que a mesma Constituição que criou o Tocantins também proclamou os nossos direitos, e o respeito a nossa Cultura.

 

Assinaturas presentes no documento original.

 

Fonte: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/carta-ao-presidente-da-funai-3

Original: Carta ao presidente da Funai

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