Brasília e São Paulo, 11 de abril de 1990.

De Ailton Krenak e organizações indígenas e indigenistas para o Secretário Nacional do Meio Ambiente

Exmo. Sr. 

José Lutzemberger 

Secretário Nacional do Meio-Ambiente

 

Conforme solicitação de V. Excia., encaminhamos as seguintes informações sobre os fatos relativos ao território Yanomami, ocorridos durante o último governo:   

  1. Após um longo processo de reconhecimento do Território indígena Yanomami pelo governo federal, a Funai, através da Portaria No. 1817/E de 08 de janeiro de 1985, interditou uma área de aproximadamente 9.400.000 ha, localizada nos estados do Amazonas e Roraima, para efeito de sua demarcação. 
  2. O ex-Presidente José Sarney concedeu inúmeras audiências a parlamentares, organizações de apoio ao índio e líderes Yanomami, nas quais se expressou favoravelmente ao atendimento de solicitações no sentido da criação do Parque Yanomami, em território contínuo, equivalente à área interditada pela Funai. 
  3. Em 13 de setembro de 1988 foi assinada a Portaria Interministerial No. 160, criando 19 áreas indígenas Yanomami, descontínuas, totalizando cerca de 2.400.000 ha, sendo 04 delas localizadas no Parque Nacional do Pico da Neblina, e também criando as Florestas Nacionais (“Flonas”) de Roraima e do Amazonas, com áreas de 2.664.685 ha & 1.573.100 ha, respectivamente, ambas incidentes no território interditado anteriormente pela Funai. A criação dessas Flonas foi justificada pela necessidade de proteger o meio ambiente circundante das áreas indígenas Yanomami, e a referida Portaria caracterizava as Flonas sendo “terra indigena”. 
  4. Em 05 de outubro de 1988 foi promulgada a nova Constituição do Brasil que no seu artigo 231 reconhece os direitos originários dos Índios à posse permanente das terras por eles tradicionalmente ocupadas, incumbe à União demarcá-las e protegê-las. No parágrafo primeiro do referido artigo, a Constituição define de forma abrangente as terras indígenas, incluindo nessa definição as áreas necessárias à sobrevivência física e cultural dos índios e à proteção do seu meio ambiente. 
  5. Em 18 de novembro de 1988, sessenta e cinco dias após a Portaria (N° 160) anterior, foi assinada outra Portaria Interministerial, N° 250, com as mesmas definições de áreas indígenas e florestas nacionais, mas descaracterizando estas últimas da sua condição de “terra indígena”. 
  6. Em 17 de fevereiro de 1989, foram publicados no Diário Oficial os 19 decretos homologatórios das áreas Yanomami descontínuas e, em 02 de março de 1990, os decretos de criação das 2 Flonas mencionadas. 
  7. Entre os dias 09 e 12 de junho de 1989, a Ação pela Cidadania, movimento da sociedade civil brasileira integrado por parlamentares, personalidades, CNBB, OAB, SBPC entre “outras organizações, visitou o estado de Roraima, inclusive a área Yanomami, e publicou “relatório denunciando a gravidade da situação na área indigena e recomendando providências aos “órgãos de governo – responsáveis. o território Yanomami se encontrava invadido por milhares de garimpeiros, contingente este que multiplicou-se a partir de 1987, sem que o governo federal tivesse adotado qualquer providência para impedir a invasão ou retirar os invasores da área. 
  8. Em 12 e 13 de setembro de 1989, cinco líderes Yanomami foram recebidos em audiência pelo Sr. Procurador Geral da República, Dr. Aristides Junqueira, a quem solicitaram providências no sentido da retirada dos garimpeiros invasores do território indigena e da demarcação contínua deste território. Os índios também foram recebidos pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Néri da Silveira, e pelos Presidentes do Congresso Nacional, Senador Nelson Carneiro, e da Câmara dos Deputados, Deputado Paes de Andrade. O Presidente José Sarney recusou-lhes audiência. 
  9. Em 12 de outubro de 1989, o Ministério Público Federal ingressou com Medida Cautelar (No. 3906/89) na Justiça Federal do Distrito Federal, solicitando a retirada dos invasores e a interdição judicial da área do 9.400.000 tia anteriormente interditada pela Funai. A seguir, o MPF ingressou com uma Ação Declaratória de Posse, solicitando judicialmente o reconhecimento da posse imemorial da área interditada em favor dos índios Yanomami. Anteriormente, o MPF já havia ingressado com uma Ação Civil Pública visando a interdição das pistas de pouso clandestinas abertas pelos garimpeiros dentro do território Yanomami. 
  10. Em 20 de outubro de 1989, o Juiz da 7ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal concedeu liminar à Medida Cautelar do MPF, determinando a interdição dos 9.400.000 ha e a retirada imediata dos invasores.
  11. Em 05 de dezembro de 1989, o Juiz da 1ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal concedeu liminar à Ação Civil Pública do MPF, determinando a interdição das pistas clandestinas. 
  12. Em 10 de dezembro de 1989, o Presidente da República enviou a Mensagem N° 273, ao Congresso Nacional, solicitando recursos para proceder à retirada dos garimpeiros do território Yanomami e para a realização de uma operação emergencial de saúde na área. Nessa data haviam mais de 200 índios Yanomami internados na Casa do Índio em Boa Vista, acometidos de malária e de outras doenças transmitidas pelos garimpeiros. 
  13. Em 10 de janeiro de 1990, o Diretor Geral da Polícia Federal, Dr. Romeu Tuma, encarregado da operação de retirada dos garimpeiros, anunciou a efetivação de um acordo com lideranças garimpeiras visando a transferência dos invasores das áreas indígenas criadas pelo governo federal para reservas de garimpagem que seriam criadas dentro da Floresta Nacional de Roraima. Interpelado pelo Juiz da 7ª Vara, o Dr. Romeu Tuma, que em 12 de janeiro de 1990, negou a existência de qualquer acordo com lideranças garimpeiras envolvendo a transferência dos invasores dentro da área interditada pela liminar da Justiça Federal. 
  14. Em 24 de janeiro de 1990, o Sr. Presidente da República anunciou em cadeia nacional de rádio e de televisão, a criação da reserva de garimpagem Uraricaá-Sta. Rosa para o reassentamento dos garimpeiros, afirmando que esta se localizava Fora da área interditada judicialmente. Em 26 de janeiro de 1990, foi publicado no Diário Oficial o Decreto N° 98.890 criando a referida reserva. Nessa oportunidade, as organizações signatárias desta anunciaram publicamente a ocorrência de uma superposição de 16% da área da referida reserva com a área judicialmente interditada. 
  15. Em 16 de fevereiro de 1990, o Diário Oficial publicou Decretos N° 28.939 a 98.960, criando as reservas de garimpagem de Catrimani-Couto de Magalhães e Uraricoera, ambas incidem integralmente sobre a área judicialmente interditada. 
  16. A operação emergencial de saúde, realizada nos meses de janeiro e fevereiro de 1990, contou com a participação de médicos e intérpretes indicados pela sociedade civil, através da Ação pela Cidadania, mas enfrentou sérias dificuldades operacionais decorrentes do insuficiente apoio logístico e de transportes. Cobriu apenas parte do território afetado e constatou o agravamento da situação de saúde, sobretudo pela alta incidência de malária, além da ocorrência de centenas de óbitos. 
  17. Em 20 de fevereiro de 1990, o MPF ingressou na Câmara dos Deputados com um pedido de licença para processar por crime de responsabilidade o Presidente da República e quatro Ministros de Estado, por serem os signatários dos Decretos que criaram as reservas de garimpagem em áreas judicialmente interditadas. Esse pedido de licença ficou prejudicado, pois não foi julgado até o dia 15 de março de 1990, data em que encerrou-se o mandato dos acusados. 

Sr. Lutzemberger, estes foram os atos do governo anterior relativos ao território Yanomami. Como se vê, eles implicam em claro descumprimento da Constituição Federal e da liminar da Justiça Federal. Caracterizam a falta de vontade política do governo Sarney para a solução do problema e explicam o enorme desgaste da imagem externa do Brasil. 

Se o atual governo de que V. Excia. participa, deseja uma justa solução para o problema, sugerimos o seguinte:  

  1. A imediata retirada dos garimpeiros de toda a área tradicionalmente ocupada pelo Povo Yanomami e o seu reassentamento, quando for o caso, fora de áreas indígenas
  2. A recuperação do meio ambiente degradado por atividades garimpeira. 
  3. A elaboração e execução de um plano permanente de saúde para os Yanomami, considerando os termos da carta de intenções encaminhada por organizações de apoio ao Esmo. Sr. Ministro da Saúde, Deputado Alceni Guerra, em audiência ocorrida no dia 04 de abril de 1990. 
  4. A realização de amplo levantamento das pistas de pouso clandestinas existentes no território tradicionalmente ocupado pelo Povo Yanomami, determinando as que deverão ser mantidas, com fiscalização permanente, para a realização de programas de saúde e de recuperação ambiental, e as que deverão ser inutilizadas. 
  5. A rígida fiscalização dos aeroportos de Boa Vista, Caracaraí (em Roraima) e Barcelos (no Amazonas), além da realização de sobrevoos regulares, com vistas a impedir novas invasões na área Yanomami. 
  6. A anulação dos 21 decretos de números 97.512 a 97.530, de 16 de fevereiro de 1989, que criaram as 19 áreas indígenas e dos decretos números 97.545 a 97.546, de 01 de março de 1989, que criaram as Florestas Nacionais da Amazonas e Roraima.
  7. A anulação dos 3 decretos de criação das reservas de garimpagem em território Yanomami, N° 98.890, de 25 de janeiro de 1990; N° 98.959 e 98.950, de 15 de fevereiro de 1990. 
  8. A demarcação, de forma contínua, do território tradicionalmente ocupado pelo Povo Yanomami.

Estas são as medidas requeridas pela situação. Se adotadas, por certo representarão a reparação de uma enorme injustiça cometida contra os Yanomami, além do acatamento à Constituição Federal e às decisões judiciais mencionadas, com o que se tornará possivel evitar prosseguimento do genocídio que vem vitimando os Yanomami, criando as condições para a recuperação da credibilidade do governo federal junto à opinião pública brasileira e mundial. 

Sendo o que tínhamos para o momento, subscrevemo-nos 

Atenciosamente, 

 

Cláudia Andujar 

Comissão pela Criação do Parque Yanomami -— CCPY 

Márcio Santilli

Núcleo de Direitos Indígenas – NDI 

Carlos Alberto Ricardo

Centro Ecumênico de Documentação e Informação – CEDI 

Ailton Krenak, União das Nações Indígenas — UNI 

 

Fonte: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/carta-ao-secretario-nacional-do-meio-ambiente-jose-lutzemberger

Original: Carta ao Secretario Nacional do Meio Ambiente, José Lutzemberger. Ailton krenak

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