Departamento de Cauca, Colômbia, 28 de março de 2006. 

De Florêncio Vaz para o povo Guarani Kaiowá.

 

Caros parentes Guarani-Kaiowa expulsos de Nhanderu Marangatu (MS), na teimosa luta pela reconquista dos seus territórios ancestrais, escrevo para partilhar essa boa nova com vocês e outros povos no Brasil. 

Desde o fim de fevereiro visitei várias organizações indígenas em diferentes regiões da Colômbia. E ainda estive no vizinho Equador. O que vi e escutei foram sinais fortes de que estes povos passaram de uma fase de resistência local e regional para outra, de um Levantamento Indígena Geral, que ainda faz falta entre nós no Brasil. Talvez possamos aprender algumas lições destes parentes. 

Os indígenas colombianos são 92 povos, 2,5% da população do país (45 milhões). A Constituição de 1991 definiu a diversidade étnica e cultural como um valor fundante da Nação e garantiu vários direitos aos povos indígenas. Mas o que se viu desde então foi o Estado desenvolver políticas que negam sistematicamente esses direitos. E devido à situação de guerra que vive o país, os indígenas estão entre as populações mais vulneráveis. 

Na reunião com os líderes Awá em Nariño, nas sedes do Conselho Regional Indígena do Cauca (CRIC) ou da Organização das Nacionalidades Indígenas da Colômbia (ONIC) e da Organização dos Povos Indígenas da Amazônia Colombiana (OPIAC) em Bogotá, a mensagem foi a mesma: os indígenas só exigem que seus direitos sejam respeitados, que possam viver com autonomia em seus territórios ancestrais de acordo com sua cosmovisão. Mas parte dessas terras estão nas mãos de fazendeiros, grandes projetos hidrelétricos ou petroleiros ou pelos grupos armados que assim tentam envolver essas comunidades no conflito. 

Os líderes dizem que seus povos são independentes, não são parte do conflito armado. Não são “neutros”, mas definem o que querem. E o que não querem: a guerra, o Tratado de Livre Comércio (TLC) e empresas petroleiras nas suas terras. Mas os grupos armados (Exército, paramilitares e a guerrilha das FARC) não entendem e nem aceitam essa “autonomia”, e tratam os índios como colaboradores do lado inimigo. 

As FARC dizem que numa guerra não há lado neutro, e já assassinaram conselheiros e até governadores índios, como relatou um senhor Awá. “As FARC são autoritárias, querem impor as coisas, têm uma visão errada sobre os índios no processo revolucionário”. Já o Governo os acusa de simpatizantes da guerrilha. Aldeias são bombardeadas e a população obrigada a fugir, líderes são “mercados” como subversivos, tornando-se alvo dos paramilitares. 

Assim aconteceu com o conhecido Kimy Pernia Domicó que era contra a construção da represa Urra I na terra dos Emberá Katio. “Desapareceu” em junho de 2001, provocando grandes mobilizações pela sua volta, o que nunca aconteceu. As evidencias apontam para ação dos paramilitares das Autodefensas Unidas de Colômbia (AUC), mas ninguém foi punido até agora. É que, quando o Governo não consegue passar um projeto legalmente, como o Urra I, ameaça os líderes e, no fim, apela para o “serviço” dos paramilitares. 

Em meio ao fogo cruzado, 1.890 índios foram assassinados entre 1974 e 2004, e outros 228 “desapareceram” (foram mortos, mas seus corpos não apareceram). Só no Governo Uribe até meados de 2005 foram mortos 609 índios. Essa taxa de homicídio é três vezes mais alta do que a nacional, que já é uma das mais altas do mundo. Algo alarmante. 

Na região do rio Putumayo, na Amazônia, continua a fumigação com o glifosato. A justificativa é a eliminação das plantações de coca, mas na prática o veneno é jogado sobre os cultivos de subsistência, animais domésticos e até gente. A OPIAC conseguiu na justiça barrar que os aviões fumigassem sobre as terras indígenas (resguardos). Sobre os camponeses o desastre continua. Uma das conseqüências comprovadas é a contaminação dos solos e dos rios, que jogam suas águas no rio Amazonas. Aliás, por que o Governo Lula não se manifestou ainda sobre esse crime? 

Através da sua organização, os índios do Putumayo demandaram na Suprema Corte dos Estados Unidos contra a Dyn Corp, companhia dos EUA que fumiga na fronteira com o Equador, acusando-a de tortura, infanticídio e mortes. Levaram suas denúncias aos corredores do senado dos EUA, aos ativistas dos Direitos Humanos e cientistas. Conseguiram sensibilizar alguns senadores que agora são críticos da política dos EUA para a Colômbia. Essas coisas a imprensa brasileira não divulga. 

Mais interessante do que a tragédia é forma como os índios enfrentam-na. Eles levam muito a sério suas palavras de ordem: unidade, território, cultura e autonomia. Seu método de luta coletiva é a resistência pacífica. Falam da resistência física, política e espiritual. Daí a revitalização da língua própria e do modo de ser indígena. Autonomia, que é sempre repetida, é também segurança alimentar: plantar e produzir o que se come. 

Tudo isso eu conferi na região do Cauca, raiz do movimento indígena colombiano. Aqui começaram as mobilizações indígenas nos anos 70, com os índios organizando sua própria plataforma de princípios e reivindicações. Saiu desta região a corrente de organização que levou à criação em 1982 da ONIC e, em 1991, das Autoridades Indígenas da Colombia (AICO), que junto com a Aliança Social Indígena (ASI) – ambos são partidos políticos – já elegeu vários senadores e deputados nacionais, além do primeiro governador indígena colombiano, Floro Tunubalá. Na Colômbia e no Equador os partidos indígenas são muitos atuantes. 

Essa força política garantiu na Constituição, a “circunscrição especial indígena”, que lhes dá direito a eleger ao menos dois senadores indígenas. Em todo o país existem já muitos vereadores e prefeitos indígenas. Encontrei na alcaldia (prefeitura) de Ricaurte (Nariño), fronteira com o Equador, o prefeito Carlos Alberto Awá, jovem graduado pela Universidade Nacional, que tenta substituir o velho assistencialismo pela participação popular. Não é fácil, mas ele olha para a recente vitória de Evo Morales na Bolívia, e sonha que outras conquistas maiores ainda virão. 

Surgiram no Cauca as grandes assembléias, longas marchas pelas estradas intermunicipais e as mingas massivas (“trabalho coletivo” com sentido de grandes mobilizações políticas e manifestações culturais e espirituais indígenas). As comunidades se organizam para impedir a entrada de grupos armados, resgatar seqüestrados e, principalmente, para a “libertação da Mãe Terra” ancestral, que – segundo eles – “está enferma, maltratada e escravizada por cultivos estranhos nas mãos dos fazendeiros”. A estrutura organizativa do CRIC é horizontal, onde cada “zona” define seus conselheiros, que definem o “conselho director”. Nada de “presidents” por aqui. 

Os índios lideram mobilizações e alianças com outros movimentos sociais. Foi assim em 2004 com a “Minga pela Vida, Justiça, Alegria, Autonomia e Liberdade”, que levou 60 mil pessoas a marcharem até Cali, para cobrar do Estado justiça e respeito aos Direitos Humanos. Em outubro de 2005 os Embera lideraram a “Minga Nacional” que, apesar de proibida e reprimida, reuniu milhares de indígenas em todo o país. 

Eles defendem de modo intransigente o direito ao governo próprio de relativa autonomia nos resguardos, garantido na Constituição. Cada resguardo está subdividida em cabildos, governados pelas próprias autoridades indígenas. Como uma prefeitura, os cabildos têm verba orçamentária repassada pelo Estado, conselheiros e “governadores” eleitos, que legislam de acordo com a cosmovisão do povo. O cabildo mayor é a reunião de todos os governadores dos cabildos, ou o governo geral de um povo indígena. No Brasil, estamos precisando conversar urgentemente sobre essa forma de exercer a autonomia nas Terras Indígenas e enterrar de vez a tutela da FUNAI. 

Como forma de chamar a atenção da comunidade nacional e internacional para o seu drama, em 1999 eles se declararam em estado de “Emergência Social, Cultural, Ambiental, e Econômica”, porque o Governo não cumpria a Lei e nem os acordo anteriores. Em seguida, declararam-se em estado de “Crise Humanitária”. Pressionado,o Estado teve que negociar. Agora a ONIC pede uma Comissão Internacional de Verificação sobre a violação dos direitos indígenas, que será formada por personalidades destacadas no campo dos Direitos Humanos. Querem com isso que a Comissão pressione o Governo colombiano a respeitar os indígenas, ou até o leve a julgamento perante uma Corte Internacional. A ONU já descreveu a situação dos Direitos Humanos dos indígenas na Colômbia como “dramática e crítica”, mas o Governo pouco fez para mudar a realidade. “Temos que dar visibilidade aos nossos problemas, se não, nada acontece”, disse o jovem líder Higino Obispo, no escritório da ONIC em Bogotá. 

Em outra conjuntura mais favorável, os índios equatorianos também chamam a atenção do seu governo e do mundo. Depois que atravessei a ponte Rumichaca, que separa Colômbia e Equador, vi um país onde a presença indígena está nas praças, nas ruas, na comida, nos rostos, nas roupas, no artesanato e nas músicas. Lá índio não é o exótico, é o predominante (quase 50% da população). Não acabou o racismo, mas os “brancos” tiveram que engoli-lo. Faz uns 20 anos, em Quito ou Otavalo, um indígena ainda que bem vestido era barrado em restaurantes finos (“aqui não temos comida de índio!”). Isso mudou. Hoje, nem presidentes da República podem vacilar com os índios. 

No Equador senti a força que os índios podem ter quando organizados. Na sede da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), às vésperas da última Paralização Nacional contra a presença dos EUA na base militar de Manta e pela expulsão da petroleira Oxxy, vi um líder declarar ao vivo para uma rádio, “se o Presidente da República assinar esse TLC, será seu último ato nesta função”. Em todas as regiões as comunidades preparavam o “paro” e a imprensa denunciava a expectativa ou temor da população em geral. Infelizmente tive que viajar antes dos bloqueios das estradas, mas quando vi as marchas na televisão, não tive dúvidas: esse povo não está prá brincadeira. 

Voltando a Colombia, provei o já famoso “refrigerante de coca”. Se gostei? Tomara que logo seja vendido no Brasil. Enquanto os EUA promovem uma campanha midiática e militar para criminalizar a coca, um grupo de índios Nasa lançou 2005 o refrigerante (www.cocanasa.com) que já é um sucesso por lá. Feito à base de folha de coca, o Coca Sek (coca do sol) é uma alternativa contra as transnacionais dos refrigerantes Alô, Saterê-Maué (AM), como está o nosso guaraná? 

De muitas maneiras, os índios estão se levantando. A teimosa resistência de vocês na beira da estrada, perto de Nhanderu Marangatu, é um exemplo. Logo teremos o Abril Indígena em Brasília como anúncio do nosso Levantamento Indígena no Brasil. Levantem o rosto, irmãos Gaurani-Kaiowa, Tupinambá e Pataxó Hãhãhãe! A Terra Libertada e Sem Males já está à nossa frente. Avancemos um pouco mais. Voltar atrás, nem para tomar impulso. Nós temos o poder, pois a força de Tupã e de nossos antepassados é que nos guia. “Eles nos desconhecem não porque sejamos menos, mas porque sabem que somos mais”. E só unidos seremos mais. Por isso, na Colômbia, Equador, Bolívia ou Brasil, a palavra de ordem é: “Shuk sunkulla, shuk makilla, shuk shimilla!”. “Um só coração, um só punho, uma só voz!” 

Florêncio Vaz, do povo indígena Maytapu, PA, é frade e ativista do movimento indígena da Amazônia. É formado em Ciências Sociais, mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ, professor de Sociologia na UFPA e doutorando em Ciências Sociais/Antropologia na UFBA.

 

Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Povos-Indigenas-da-resistencia-ao-levantamento-geral/19997

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