Manaus, 30 de abril de 1996. 

Da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) para as lideranças indígenas

CARTA ABERTA ÀS LIDERANÇAS INDÍGENAS PARTICIPANTES DA V ASSEMBLÉIA GERAL DA COIAB 

 

Quero em primeiro lugar cumprimentar todas as lideranças aqui presentes e aproveitar esta oportunidade para partilhar com vocês algumas preocupações e reflexões que venho acumulando no exercício do meu trabalho de assessoria junto à Coordenação Executiva da COIAB, há 4 anos. 

Problemas de saúde fizeram com que eu tivesse que me afastar das minhas atividades desde o início do ano. Procurei aproveitar este tempo para amadurecer algumas idéias que dizem respeito ao próprio futuro desse movimento, às suas orientações e perspectivas, às consequências de determinadas escolhas em relação a maior autonomia dos povos indígenas da Amazônia. 

Acredito que, na qualidade de assessor da COIAB, e tendo em vista o meu engajamento que considero bem além do simples vínculo profissional que nos une, eu não poderia me omitir, neste momento importante, de partilhar essas idéias com vocês. Procurei apresentar essas preocupações de forma sistematizada, abordando os temas que, ao meu ver, merecem uma atenção particular. Essas colocações têm por único objetivo contribuir com um processo de reflexão que, de certa maneira, já vem acontecendo no movimento indígena. E por esta razão, gostaria muito que esta iniciativa seja entendida neste sentido. 

Formação do movimento indígena 

Refletindo a respeito da origem do movimento indígena, percebemos que o mesmo surgiu e se desenvolveu a partir de lutas locais e regionais e foi se estruturando com o objetivo de promover maior articulação entre os diversos povos indígenas. Organizações foram criadas na perspectiva de fornecer respostas políticas aos problemas existentes, associado a perspectiva de revelar para a sociedade a realidade efetiva dos povos indígenas, fugindo dos estereótipos e dos preconceitos existentes. Esse processo levou a estruturação de organizações maiores a nível regional e também de Coordenações amplas como o são a COIAB e o CAPOIB. 

Estas organizações, em seu funcionamento e sua forma, se assemelham aos organismos da sociedade nacional e fazem inclusive uso dos mesmos instrumentos de trabalho. A COIAB iniciou suas atividades com poucos recursos, sem as mínimas condições e sustentada basicamente pela força de vontade de suas lideranças. As primeiras equipes de coordenação experimentaram o impacto desse novo modelo de luta, tendo para isto que passar por uma fase de aprendizado no campo político e de reconhecimento de um rede complexa de relações existentes no seio da sociedade nacional. 

Tornou-se necessário, para garantir o reconhecimento da COIAB adaptar uma série de exigências em termos estatutários, administrativos e burocráticos, adequando assim a sua organização interna e modo de funcionamento, simplesmente para poder sobreviver no meio da sociedade brasileira como movimento civil organizado.  

Em 1994, a própria estrutura da COIAB foi redefinida na tentativa de garantir maior participação das bases através da formação do Conselho Geral, composto por Conselheiros de 16 regiões que se encontrariam com a Coordenação Executiva a cada 04 meses para avaliar e planejar os trabalhos. 

O volume de trabalho administrativo e burocrático passou a aumentar de forma tal que a equipe de apoio foi também ampliada, necessitando de mais recursos para o gerenciamento das ações da COIAB. Paralelamente a isto, a Coordenação Executiva passou a ser solicitada mais frequentemente para participar de atividades externas, representando o movimento indígena em nível nacional e internacional. Dificuldades começaram a surgir na tentativa de responder às demandas crescentes dirigidas à Coordenação, crescimento que se deu proporcionalmente ao desenvolvimento de sua atuação política. 

Novos desafios surgiram e é necessário que sejam encarados com seriedade. Vou procurar apresentar aqui alguns desses desafios no intuito de colaborar com a discussão que várias lideranças já vem realizando no sentido de buscar pistas para o movimento indígena na afirmação de sua identidade e na busca de alternativas que respondem aos próprios objetivos estabelecidos para a COIAB e, mais do que isso, aos anseios dos povos indígenas. 

  1. CONDIÇÕES DE TRABALHO E RESPONSABILIDADES DA COORDENAÇÃO EXECUTIVA DA COIAB 

Atividades administrativas 

O trabalho da Coordenação Executiva da COIAB, atuando na sede da organização, implica em uma série de atividades de ordem administrativa e mesmo técnica, às quais as lideranças não foram normalmente preparadas. O ato da eleição, nas Assembléias Gerais, não possibilitou até o momento que se procurasse definir com mais precisão critérios e condições mínimas de elegibilidade, para que as lideranças pudessem assumir o cargo e a função específica que lhes foram designada na coordenação do movimento. Isto significa que são confrontados à necessidade de assumir trabalhos no campo político, na atuação junto às bases, na formação, na administração e contabilidade, nas questões trabalhistas ou nas relações com os funcionários, nas atividades ligadas a divulgação das informações e ao contato com os meios de comunicação, e outros. Trabalhos estes sobre os quais pouco sabem, fazendo com que tenham que aprender no dia a dia tais conhecimentos, gerando às vezes insegurança e dificuldades na condução dos trabalhos. 

É necessário também que as lideranças sejam informadas de suas condições de trabalho e de existência na cidade. A vida em Manaus é bem diferente da vida levada nas aldeias. O ritmo de vida é elevado, o isolamento é grande, as dificuldades para garantir o próprio sustento são reais (aluguel, comida, transporte, etc,…). Neste contexto, nem sempre as lideranças ou suas famílias conseguem se adaptar com facilidade. 

A realidade tem revelado que as lideranças eleitas na Coordenação Executiva da COIAB têm assumido de modo sempre mais marcante as principais decisões que dizem respeito ao conjunto movimento. Procurando entender os motivos que levaram a uma certa desresponsabilidade progressiva das organizações membros na COIAB, percebemos a existência de alguns problemas que dificultam uma melhor interação: 

— a distância e os problemas de comunicação existentes entre a Coordenação e Organizações membros da COIAB; 

— a dificuldade das organizações locais e regionais em acompanhar os acontecimentos de longe, sem possuir sempre todas as informações necessárias para compreender as questões em sua globalidade; 

— a necessidade de uma decisão ou de uma resposta política às vezes quase que imediata por parte da COIAB como instituição, tendo, em determinadas circunstâncias, pouco tempo para esperar alguma reação das organizações de base; 

— uma certa prática levada pelo ritmo acelerado de trabalho, em que de fato, nem sempre são feitos os esforços necessários no sentido de envolver, discutir, debater e garantir a participação de outras lideranças, etc..  

Responsabilidades assumidas pela Coordenação 

Isto fez com que as equipes de Coordenação Executiva viessem a assumir maior responsabilidade em diversos campos de atuação, tais como: 

— nas representações da COIAB em eventos, encontros, Assembléias, fóruns dos mais diversos tipos; 

— nas relações de aliança e de colaboração com outras instituições; 

— nas posturas assumidas publicamente nos meios de comunicação referente a qualquer assunto de atualidade da questão indígena, veiculando assim a “imagem “do conjunto do movimento; 

— na administração interna da COIAB, assumindo grande responsabilidade perante as agências financiadoras e os órgãos públicos estaduais e mesmo federais. 

Não podemos esquecer, além disso, o papel desempenhado pela Coordenação frente ao movimento em seus aspectos essenciais, definindo a própria linha política da entidade, as suas orientações de trabalho, as suas estratégias na resolução de determinados problemas, o impulso e os valores impregnados em todas as suas ações. 

  1. A QUESTÃO DA REPRESENTATIVIDADE 

O movimento indígena constituído em sua forma atual, através de organizações locais e regionais, e instâncias de representação, se, de um lado, apresenta vantagens significativas no que diz respeito à relação com a sociedade envolvente, fazendo uso dos instrumentos e da tecnologia moderna para lutar na defesa dos interesses dos povos indígenas, do outro lado gera uma série de problemas inerentes a sua estrutura distante da realidade e do modo de vida das aldeias. 

Papel das lideranças 

Neste contexto, é preciso analisar o papel assumido pelas lideranças indígenas à frente do movimento, numa situação em que sofrem constantes pressões, suportam o peso da responsabilidade e são permanentemente expostos à questões morais e mesmo éticas difíceis de serem carregadas de forma isolada. Refiro-me aos inúmeros problemas que essas lideranças enfrentam assumindo cargos de representação, de coordenação ou de chefia em qualquer nível organizacional do movimento. 

O que significa de fato esse papel no qual as lideranças são confrontadas ao imperativo de ter que representar pessoas, famílias, povos e organizações indígenas que muitas das vezes nem conhecem? 

Assumem um cargo de “poder” construído e distinto daquele existente na vida tradicional. Pois, até o momento, tem sido comum as organizações indígenas reproduzirem a forma de representação democrática da sociedade nacional, em que o envolvimento da população se dá essencialmente no ato da eleição, transferindo a partir desse momento o poder de decisão e as responsabilidades para uma minoria eleita. 

As lideranças se viram então na obrigação de tomar decisões importantes sem maior participação da população indígena, e talvez sem aprofundar suficientemente o debate e a discussão para medir até as últimas consequências o alcance e as repercussões de suas ações. Essas lideranças precisam viajar em lugares desconhecidos, onde são tidos como pessoas importantes. Devem fazer o devido uso de recursos financeiros aprovados para fins específicos, devem gastar este dinheiro em conformidade aos projetos encaminhados, cujos valores muitas vezes nunca imaginavam ter que administrar um dia, devem prestar contas destes recursos, em nome da organização.  

Maior poder nas mãos da Coordenação Executiva 

Refletindo um pouco mais sobre a dinâmica das relações existentes no seio da COIAB, faz-se necessário constatar que a centralização das decisões e do poder nas mãos de poucos representantes, ou às vezes mesmo de uma única liderança, foi reforçada pelo fato de que, não existe uma instância de direção política mais ampla, aberta e participativa na COIAB, que orientasse os trabalhos “executados” pela Coordenação. O Conselho Geral, não conseguiu ainda servir de plataforma de reflexão, planejamento e avaliação permanente da política indígena da COIAB, dando os parâmetros básicos e as linhas diretrizes principais, questionando e reorientando, estimulando e contribuindo para que a Coordenação possa efetivamente assumir o seu papel executor. Até o momento, o Conselho tem servido muito mais de espaço de intercâmbio, troca de informações e de formação das lideranças, assim como de legitimação das decisões da Coordenação, sem um debate mais aprofundado sobre as questões de interesse do movimento indígena. 

Na ausência desta instância, a responsabilidade desse mandato recaiu automaticamente sobre a Coordenação Executiva, que se viu na obrigação de carregar, praticamente sozinha, esse peso enorme em suas costas. 

Diante desta questão complexa, acredito ser necessário pensarmos na função desempenhada pelas lideranças, assim como no papel e na responsabilidade das organizações membros da COIAB, não só com a direção do movimento mas também para com essas lideranças. Eleger um líder numa Assembléia é uma coisa. Propiciar condições para que essa liderança possa assumir o cargo para o qual a elegemos, é outra coisa. Pois, pensemos um pouco. Será que os líderes eleitos receberam a devida preparação, um acompanhamento razoável, um apoio efetivo em relação às implicações de seu mandato, “os perigos existentes”, as dificuldades inerentes a tal trabalho político? 

Essa carência assim como o peso dos desafios e de tantas pressões tem provocado, em algumas situações extremas, conflitos internos, desentendimentos no seio das próprias equipes de Coordenação, gerando um clima tenso e inapropriado ao exercício e a gestão tranquila e eficaz dos trabalhos. 

Num outro aspecto, acredito que a maioria das lideranças eleitas tem sofrido um dilema no que diz respeito a como empenhar-se em trabalhos políticos, técnicos, administrativos, sem deixar amenizar os valores culturais próprios, a dinâmica das relações mais humanas e solidárias aprendidas nas aldeias. Como se “reoxigenar”, manter a clareza de espírito necessária para que os trabalhos desenvolvidos correspondam de fato aos anseios indígenas? Como evitar um certo desgaste ou acomodação de lideranças nos trabalhos meramente burocráticos e administrativos realizados diariamente nas sedes das organizações? Como evitar ainda que essa burocracia, o papel, a rapidez dos acontecimentos, o fascínio da tecnologia moderna venham aos poucos corroer as aspirações e os valores profundos que são o próprio motor de toda esta luta?  

A importância da corresponsabilidade 

Um outro questionamento se faz necessário em relação àquilo que acontece com estas lideranças uma vez terminado o seu mandato. A mesma preocupação vale nas situações em que ocorrem problemas com lideranças no decorrer do mandato? É preciso aqui refletir um pouco a respeito da corresponsabilidade que deveria existir entre as organizações de base de onde se originam as lideranças e a própria COIAB, no sentido de contornar conjuntamente os problemas e situações de interesse comum. 

Mesmo se algumas organizações realizaram sérios esforços na perspectiva de acompanhar as suas lideranças, tal atitude ainda não se reflete no conjunto do movimento. E até o momento, não se pensou suficientemente nesta questão no sentido de evitar desgastes, tensões desnecessárias, garantindo às lideranças o devido respaldo tanto no desenvolvimento de suas funções quanto no final do seu mandato. Essas lideranças deram a sua contribuição, participaram na construção desse movimento e precisam ser acompanhadas inclusive na sua reinserção na própria aldeia ou organização local, fazendo valer toda a sua experiência acumulada à serviço da organização. 

A falta de uma definição mais clara a este respeito fez com que várias lideranças encontrassem-se praticamente “na rua” sem qualquer respaldo ou mesmo reconhecimento pelo trabalho que tenham desempenhado no movimento. Pode-se constatar um progresso, já que algumas organizações demonstraram uma preocupação efetiva com esta questão. A maior prova disto é que membros da Coordenação que terminam o seu mandato agora já foram eleitos para assumirem cargos em suas organizações de base. 

É necessário estarmos bem cientes de que, numa situação de tensão, de problemas relacionados com questões éticas envolvendo lideranças indígenas, além da responsabilidade individual mais direta é, em última instância, a própria organização que deverá assumir a responsabilidade dos acontecimentos e responder perante quem de direito pela situação criada. Ocorreu por exemplo na COIAB, casos em que a Coordenação eleita teve que assumir e solucionar questões não resolvidas por Coordenações anteriores, com as quais nada tiveram que ver diretamente e em relação às quais não possuíam informações. 

Nos encontramos novamente diante da falta de algum mecanismo, algum instrumento que garanta a participação efetiva das organizações de base nas decisões e nos encaminhamentos mais importantes assumidos em seu nome.  

  1. CONTEXTO TRADICIONAL X MOVIMENTO INDÍGENA ESTRUTURADO 

Toda esta discussão levanta uma outra reflexão em relação à participação e o envolvimento da população indígena nas organizações. 

Distanciamento da realidade local dos povos indígenas 

Mesmo se algumas organizações procuram envolver o povo das aldeias e as lideranças tradicionais no movimento, devemos reconhecer que é ainda bastante comum que organizações sejam consideradas com certa indiferença ou desinteresse, como algo que existe fora do referencial e do contexto indígena mais direto da aldeia. 

A população das aldeias nem sempre se reconhece nestas organizações, não se sente muitas vezes fazendo parte integrante das mesmas, mesmo daquelas mais próximas de sua realidade. Existe por parte dos povos indígenas, certa dificuldade em entender o papel das organizações constituídas para os representar. Isto se deve ao fato, como vimos, de que nas aldeias, as formas de representação garantem uma participação bem mais expressiva e direta do povo nas questões de interesse da coletividade, o que praticamente não ocorre nas organizações políticas atuais. 

Tais instâncias, distante desse contexto tradicional, são frequentemente consideradas do mesmo modo que outras entidades ou instituições governamentais, como no caso da FUNAI, presente para resolver problemas, assumir as decisões e dar coisas materiais. O mesmo ocorre com maior frequência na medida em que as representações do movimento se distanciam geograficamente da realidade das aldeias. 

Não há por exemplo um entendimento claro nas aldeias de que a COIAB seja de fato uma organização dos povos indígenas da Amazônia. Ela é muito mais considerada como pertencente às lideranças que a dirigem, pois a sua estrutura, a localização de sua sede, a dinâmica de suas relações e seu modo de agir encontram-se tão distante da vida e dos problemas dos índios, de suas famílias, que dificilmente conseguem apropriar-se desta instância como sendo seu instrumento de luta num outro nível de ação. Os senhores sabem melhor do que eu as razões que provocam essa separação entre dois mundos e dois modos de organização que ainda não conseguiram encontrar um equilíbrio na tentativa de acumular experiências, conhecimentos e sabedoria fantasticamente distintos. 

Organizações estruturadas no modelo ocidental 

Hoje a grande maioria das organizações são de fato constituídas em um único modelo, aquele reproduzido e às vezes adaptado das estruturas da sociedade civil nacional, e possuem corpo diretivo, uma sede, geralmente localizada na cidade ou instalada nas aldeias de maior peso político, equipamentos de trabalho, recursos financeiros através de projetos, onde um grupo de lideranças atua na tentativa de responder a tantos trabalhos políticos, demandas burocráticas e solicitações de suas bases. 

Ao contrário daquilo que acontece na organização tradicional que possibilita maior unificação do povo, esse sistema tem provocado o surgimento de inúmeras organizações, às vezes dentro de um mesmo povo. Se multiplicam as organizações tanto políticas quanto aquelas criadas na tentativa de defender os interesses de um segmento da população indígena ou de uma categoria particular, (organizações de mulheres, de estudantes, de professores e agentes de saúde, etc…). 

Com isto se multiplicam os cargos de lideranças, as estruturas e os seus problemas, gerando em alguns casos divisões sérias e conflitos internos. Torna-se assim cada vez mais difícil de planejar e administrar lutas com um objetivo comum e que diz respeito ao conjunto da população. Esta, por sua vez, encontra sempre mais dificuldade em compreender essa complexa realidade política e organizacional. Porque na realidade, estes problemas são também estreitamente relacionados com outras interferências de ordem política, religiosa, econômica, cultural no confronto com a sociedade dominante. 

É preciso ainda observar e analisar mais de perto a dinâmica que se instala na relação entre os integrantes destas organizações e o povo, e qual a perspectiva para que tais organizações venham atender, não só os problemas materiais e imediatos do povo, mas os seus anseios mais profundos em termos de vida, de futuro, de manutenção dos valores culturais. 

Será que a sua forma e funcionamento são compatíveis com a forma de resolver os problemas e realizar as discussões nas aldeias? Será que não existem outras alternativas de organização mesmo política mais próximo da realidade tradicional dos povos indígenas? Qual é no contexto atual, o espaço existente para que o próprio povo, as lideranças tradicionais tenham a oportunidade de trazer a sua contribuição, fazendo valer a sua experiência, sentindo-se à vontade para isto? Será que isto é impossível? Não haveria outras formas de organização que permitissem conciliar experiências e formas de agir, de debater, de decidir tão distintas? Por que não valorizar a pluralidade de culturas, de modos de organização existentes entre os povos indígenas, para construir novos modelos de luta e de defesa dos direitos indígenas? 

Como encontrar um equilíbrio entre dois mundos e duas maneiras tão distintas de conceber a vida e as relações entre os homens? Como garantir que as lideranças sejam portadoras da esperança e da força desse movimento, e evitar maior distanciamento entre estas e o povo das aldeias?  

Consequências desse modelo 

A observação pode, neste momento, ser uma ótima aliada, revelando alguns sintomas significativos que se repetem no funcionamento das organizações indígenas atuais: 

— Se o trabalho desenvolvido nas sedes das organizações favoreceu uma resposta política na defesa dos direitos indígenas, além de um rico aprendizado para algumas lideranças, ele tem representado, sem dúvida alguma, um esforço e um tempo considerável na perspectiva de garantir principalmente a própria sustentação “destas máquinas”. Poderia ser interessante avaliar se o empenho realizado nesse sentido não superou os esforços e tempo atribuídos aos objetivos para os quais as organizações foram estruturadas, ou seja, um espaço do povo indígena e constituído para atender os anseios do povo indígena; 

— É possível constatar de modo frequente, que quanto mais a organização se estrutura, ganha campo político, adquire bens materiais, maior tem sido a distância entre os representantes indígenas e a população das aldeias, e consequentemente maior dificuldade de entendimento mútuo. A linguagem se torna diferente, os códigos são outros, os desafios mudam de esferas, e principalmente a comunicação se torna cada vez mais difícil; 

— A manutenção destas estruturas tem se dado, como vimos, através de recursos externos às comunidades. Se tais recursos possibilitaram a aquisição de muitas coisas que antes não existiam, eles representaram também uma armadilha uma vez que reduziram ou mesmo, em muitos casos, inibiram completamente a iniciativa e a participação das aldeias no processo organizativo, favorecendo a passividade e a expectativa das coisas que vem de fora da aldeia; . 

— O poder de decisão em relação a muitas coisas que acontecem na aldeia ou na região foi transferido para sede da organização e permanece distante de um acompanhamento mais direto da população e de seus líderes tradicionais, alheios a este novo processo. Assim sendo, apesar dos esforços realizados em algumas situações, está ocorrendo um processo de distanciamento entre os representantes indígenas mais novos que se encontram à frente das organizações e os líderes tradicionais. As sedes das organizações regionais têm representado um ponto de referência e um atrativo significativo para os povos indígenas, levando das áreas indígenas para a cidade a resolução dos problemas e a organização do movimento. Isto tem criado uma série de outros problemas ligados à permanência prolongada dos índios na cidade. 

A partir destas observações, poderia ser interessante olhar o movimento na sua própria estrutura e formação de modo mais crítico, na busca de respostas novas, e tendo a coragem por exemplo de questionar a própria razão de ser dessas estruturas, e a validade de um modelo que, até o momento, não comprovou ser o mais adequado para os fins que pretendem atingir. 

  1. ORIENTAÇÃO DO MOVIMENTO INDÍGENA 

Tais considerações trazem consigo outra reflexão. A COIAB é por excelência uma entidade “forjada” para atender as necessidades do movimento indígena, e foi estruturada para atuar em duas frentes: 

— na relação com a sociedade nacional, representando em suas diversas esferas o mundo indígena, na tentativa de promover e garantir o respeito aos direitos indígenas; 

— e, conforme consta no próprio Estatuto da COIAB, na perspectiva de articulação, de coordenação das atividades desenvolvidas pelos povos ou organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, na busca de maior força política e no desenvolvimento de ações e políticas conjuntas, buscando um maior entrosamento e intercâmbios entre povos e organizações. 

Isto significa, então, que o seu campo de atuação deveria ser dirigido tanto para fora do movimento, nas relações com a sociedade nacional, como para dentro do movimento, aprimorando as suas relações e procurando resolver os seus problemas. 

Como estas frentes de atuação se desenvolveram até o momento? Podemos perguntar qual tem sido a prioridade e principal orientação da COIAB até hoje?  

Maior atuação na relação com a sociedade envolvente 

O próprio processo histórico da COIAB revela que a mesma foi obrigada a assumir uma prioridade efetiva na relação com o mundo dos brancos, simplesmente para ser reconhecida, conquistar espaço político, novas alianças, fazer ouvir as vozes indígenas nas mais diversas esferas da sociedade brasileira e mesmo internacional. A própria sobrevivência da organização dependeu de um esforço considerável para que os representantes da COIAB pudessem simplesmente ser ouvidos ou recebidos por representantes governamentais e de outros organismos da sociedade. Lembro que ainda em 1993, políticos e representantes governamentais afirmavam que a COIAB nada representava, não possuía peso político algum. Hoje tal espaço foi de fato conquistado, passo a passo, garantindo o reconhecimento da COIAB em todas as instâncias oficiais, nacionais e internacionais. É comum, por exemplo, que personalidades e representantes das mais diversas instituições nacionais ou internacionais visitem a sede da COIAB para conhecer de mais perto as suas atividades e funcionamento. Isto comprova efetivamente que a COIAB conseguiu consolidar a sua presença e identidade de maneira ampla, representando os povos indígenas da Amazônia. 

Mas não resta dúvida que tal orientação e definição de prioridade teve o seu preço, principalmente no que diz respeito ao desempenho e qualidade de trabalho da COIAB junto às suas bases. Mesmo se houve um nítido avanço na relação da Coordenação Executiva com as organizações regionais e locais, não houve uma política de fato orientada para dentro do movimento. Não se deu prioridade no desenvolvimento de ações que viessem favorecer de fato as aldeias e as próprias organizações locais e regionais em seu fortalecimento e processo organizativo. As atividades foram neste campo isoladas, descontínuas e realizadas no intuito de responder a demandas pontuais.  

Consequências dessa orientação 

Deve-se avaliar as consequências dessa orientação e refletir sobre como isto tem repercutido nas aldeias. Percebe-se, por exemplo, que o tipo de presença da COIAB nas bases se deu principalmente na perspectiva de representar a organização nas Assembléias indígenas, repassando informações sobre a política indigenista do Estado e discutindo temas de atualidade para a questão indígena (biodiversidade, alternativas econômicas, questões jurídicas, etc…). 

Sem todavia conseguir definir uma estratégia pensada e elaborada para dentro do movimento no sentido de dirigir a ação para a resolução dos reais problemas existentes nas aldeias. 

Isto pode explicar a imagem que, às vezes, se tem nas bases a respeito das organizações, além de uma certo sentimento de desconfiança entre o povo e as lideranças tradicionais a respeito destas organizações mais recentes. 

Esse processo organizativo pode facilmente ser abalado quando não consegue corresponder às expectativas mais simples e diretas da população. Quando não há clareza e compreensão pela população das razões de determinadas políticas. Simplesmente, quando, nas aldeias, se tem a impressão de que a opinião e a participação da população não é considerada com a devida importância. 

Pois, não podemos nos enganar, a construção e o desenvolvimento do movimento é lento, árduo e passa por fases necessárias de aprendizado, amadurecimento, e assimilação de novos elementos. Esta nova forma de organização ainda não conseguiu, na maioria das vezes, ser compreendida em seus objetivos e modos de funcionamento. Provavelmente pelo fato de que o seu surgimento foi rápido e restrito à participação de lideranças que dominam os códigos da sociedade brasileira. Isto dificultou sem dúvida a sua aceitação no contexto indígena tradicional. 

Nesta avaliação, não se pode esquecer de refletir sobre todo o potencial, toda a riqueza e energia que existe na realidade simples das aldeias. Será que tais elementos ainda bem vivos nas culturas indígenas da Amazônia estão sendo considerados em seu verdadeiro valor? 

Acham que os aspectos mais diretamente relacionados com a cultura tradicional de seus povos têm sido adequadamente valorizados neste novo processo organizativo? 

Acredito que a busca do equilíbrio ao qual me referia antes, passa obrigatoriamente por uma compreensão dos valores existentes em cada lado da balança, atitude que poderá fornecer os elementos necessários para orientar o movimento indígena na direção adequada. 

  1. À BUSCA DE NOVAS RESPOSTAS EM TERMOS ECONÔMICOS 

Sustentação das Organizações indígenas 

O movimento indígena tem conseguido atuar através do apoio de projetos financeiros, de doações, oriundos das mais diversas fontes. Mas se houve uma época em que projetos conseguiam a sua aprovação com relativa facilidade, a situação hoje mudou consideravelmente. A realidade da Cooperação Internacional é outra, em que tanto a questão da Amazônia como a questão indígena deixaram de representar uma prioridade. Os recursos se fazem mais escassos o que acarretou uma redefinição das agências financiadoras basicamente sob três enfoques: o agrupamento geográfico dos projetos: a reorientação temáticas dos mesmos; e o aumento das exigências relacionadas com a qualidade de gestão dos projetos aprovados. 

Além disso, há uma cobrança sempre maior no sentido de diversificar as fontes de recursos financeiros dos projetos, seja através de co-financiamentos e principalmente de uma contrapartida sempre maior exigida pelos executores destes projetos. 

Diante deste novo quadro, acredito que há sérios motivos para que o movimento indígena assuma essa questão de forma prioritária. Caso contrário, não é impossível que venha a ocorrer uma paralização das atividades impulsionadas pelas organizações pela falta de verbas. 

Podemos nos perguntar como encontrar recursos e apoios financeiros no próprio país? Quais as possibilidades de suscitar entusiasmos e apoios de grupos que aceitariam trazer um suporte financeiro (estudantes, outras minorias ou segmentos da população, etc…). Por que não implementar um sistema de assinatura das revistas e boletins indígenas? 

O caminho para a autonomia financeira da organização passa obrigatoriamente pela resolução dos problemas econômicos atuais. Como é possível reduzir os gastos, diminuir a dependência dos projetos, redimensionando para tal as ações, e sobretudo ampliar a participação e a contribuição da população nos trabalhos organizativos.   

Várias experiências muito interessantes já vêm sendo realizadas por várias organizações, conseguindo por exemplo uma ajuda significativa da população no sentido de garantir a alimentação durante as Assembléias indígenas.  

Melhoria de vida nas aldeias

A questão econômica traz consigo o problema da terra, da luta constante assumida para garantir maior reconhecimento dos territórios indígenas. Neste campo também é necessário aprofundar o debate sobre os modos de ocupação da terra, e novas formas de exploração dos recursos naturais no intuito de garantir a defesa territorial, não apenas no papel. Existem inúmeras provas de que isto não tem sido suficiente. Isto deve ser trabalhado na prática, ocupando e trabalhando a terra de forma diferenciada. Algumas experiências estão inclusive iniciando, mas não estão sendo suficientemente difundidas. Não é mais possível pensar em manter apenas as formas de produção às quais estão acostumados. As alternativas existem e podem ser aproveitadas progressivamente por meio de um longo processo de informação e de preparação do povo para estas novas concepções do trabalho e da relação com a terra.  

  1. CONCLUSÃO

A resolução dos problemas acima enfocados e de muitos outros depende ainda do investimento que as organizações indígenas fizerem no sentido de capacitar as suas lideranças para esta tarefa. As propostas de formação até hoje implementadas são ainda muito restritas às lideranças e agentes indígenas, e têm como preocupação principal a sua capacitação para assumir tarefas administrativas e de gestão no âmbito da organização. Tal preparação tem se dado na maioria das vezes em cursos ministrados na cidade, com a colaboração de técnicos e assessores em função do seu conteúdo. 

Novamente, vale refletir sobre outras possibilidades de pensar na formação valorizando também conhecimentos tradicionais (das plantas medicinais, poderes de cura, técnicas ligadas à cultura material dos povos indígenas, grande conhecimento do meio ambiente, formas próprias de organização, etc…). Ou ainda, valorizar o aprendizado diferenciado das crianças nas próprias escolas indígenas. A COPIAR possui neste sentido toda uma experiência a ser valorizada. 

As reflexões e questionamentos aqui apresentados, trazem à tona uma série de problemas, mas também muita esperança. O movimento indígena tem se caracterizado pela sua capacidade de resistência, surpreendendo inclusive outros setores da sociedade brasileira. Encarar estes e outros desafios que dizem respeito ao próprio futuro dos povos indígenas, é acreditar no dinamismo e na capacidade de adaptação dos povos indígenas, os quais já foram comprovados por inúmeras vezes. 

A resposta está nas vossas mãos, na vossa vontade de vencer e de buscar soluções não somente em Brasília e no meio da sociedade brasileira, mas essencialmente junto aos seus povos, nas suas áreas, valorizando as experiências e a sabedoria que ali se encontram.

Cada etapa nova merece a sua devida avaliação. Talvez este seja o momento de criar as condições adequadas para uma reflexão aprofundada na busca de respostas que atendam a problemática atual. 

O êxito de uma determinada ação ou estratégia muito depende do momento em que se age, dos objetivos sinceros e claros que nos orientam e da convicção carregada não apenas por alguns, mas pela própria população interessada. 

Neste sentido, o movimento existe porque assim foi a vossa vontade, e este se tornará naquilo que dele quiserem fazer. Pode, segundo os seus anseios mais profundos, avançar sempre mais, adequando a organização à necessidade e vontade dos povos indígenas, pois, nada mais representa que um instrumento de luta, de união e fortalecimento, em vossas mãos. Pouco importa nesta altura o tamanho das estruturas que construíram, a quantia dos recursos disponíveis ou ainda a fama adquirida perante as câmeras de televisão. Porque, muito mais do que isto, vale a capacidade de mobilização dos vossos povos; a seriedade das lideranças, a credibilidade e a confiança que o povo nelas deposita, a participação efetiva que garanta a vontade da maioria, construindo o movimento a partir da própria identidade indígena. 

 

Silvio Cavuscens 

Assessor técnico/COIAB 

 

Fonte: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/carta-aberta-liderancas-indigenas-participantes-da-v-assembleia-geral-da-coiab

Original: Carta aberta as liderancas indigenas participantes da V Assembleia Geral da Coiab.

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