De Gersem Baniwa para líderes indígenas.

17 de novembro de 2002.

Estimados companheiros líderes indígenas,

É com surpresa e muita preocupação que tomei conhecimento do conteúdo do e-mail que circulou em 14/11entre instituições do PT Nacional, no qual cita o meu nome e de vários companheiros que há muito tempo vêm lutando legitimamente pela causa dos nossos povos indígenas. Se o Álvaro Tucano é o informante, está esclarecido e para mim resolvido, agora se é visão do PT ou grupo do PT que está ou estará assessorando o nosso Novo Presidente e sua Equipe aí é motivo de arrepios, para os que tem bom censo e coerência.

Se se trata do primeiro caso, é puro fruto de inveja e incapacidade de superação

de si mesmo do informante, que desde 1987 procura duas coisas: espaço pessoal no movimento indígena que não o aceita nem ao nível local (FOIRN), e nem Nacional, por isso tenta entrar pulando janelas ou derrubar (passar perna covardemente) quem quer que seja  para garantir o seu espaço.

O movimento indígena, de modo particular a FOIRN e a COIAB têm convivido com esses ataques desde 1987, de pessoas individuais que se dizem lideranças (de suas famílias, eu acho, pois não encontro nas atas das grandes assembleias indígenas regionais e nacionais) para dividir e enfraquecer o movimento e as organizações indígenas. Para mim esse tipo de estratégia sempre foi de interesse de grupos conservadores do governo ao longo do tempo. Em função disso, acredito que um governo progressista, no qual apostamos todas as nossas esperanças e nossas capacidades, não vai repetir essa prática.

Quanto ao segundo caso, aí está a preocupação: será que o novo governo vai trabalhar com estes perfis e estratégias (dividindo povos, lideranças e organizações)? Eu não acredito. Desde o início fui e sou militante do PT e das idéias que sempre defendeu. Por que essa novela já vivemos na década de 80, quando eu e muitos companheiros lideres da FOIRN éramos perseguidos e ameçados por políticos e militares, a ponto de uma vez termos nossos assesssores e advogados presos e expulsos da aldeia indígena de Iauareté. Ao mesmo tempo, outros poucos índios, que são hoje nossos interlocutores, negociavam com o governo e militares o esfacelamento das nossas terras (defendendo colônias indígenas), implantação de quartéis (que na época estupravam  nossas mulheres e irmãs) e ainda negociando royalties com as empresas mineradoras para invadirem nossas terras. Isso seria um atentado aos direitos e interesses das nossas organizações indígenas, que hoje não aceitam mais interlocutores pessoais, para isso estão as nossas organizações.

Minha preocupação vai além de um militante, de um cidadão índio que mais do que princípio partidário, tem o compromisso e o dever de continuar reconstruíndo a história dos nossos povos indígenas do Brasil, há cinco séculos de massacre e de genocídio. Isso sim continuaremos fazendo em qualquer administração, melhor ainda, progressista como o que conquistamos agora, e é a grande esperança de todos os nossos povos, índios ou não. Este é o nosso compromisso maior, inviolável e inegociável. A luta indígena não se trata de partido ou de cargo ou função, se trata de um compromisso moral, ético e político.

Para quem não me conhece:

1) Sou baniwa, do Rio Içana, afluente da margem direita do Rio negro e estou trabalhando ininteruuptamente no e com o movimento indígena há exatos 15 (quinze anos), e nunca pensei em um dia  ter que escrever um e-mail como este para defender minha honra e dignidade, pois para isso, minha vida é testemunha.

2) Em abril de 1987 fui eleito por mais de 300 lideranças indígenas do Rio Negro para Vice-presidente da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – hoje uma das mais fortes atuantes do país), que estava sendo fundada como resposta a iniciativa exatamente do Álvaro e um grupo de índios literalmente cooptados naquela época pelos chefes militares do SNI, das empresas mineradoras como Goldmazon e Paranapanema, que haviam convocado todas as lideranças indígenas com objetivo de referendar a implantação do Projeto Calha Norte, da Ímplantação de Empresas mineradoras nas terras indígenas e obrigar os índios a aceitarem a demarcação de suas terras  em formas de colônias indígenas. A assembléia dos índios revoltou-se contra isso e como resposta criou a FOIRN para defender os direitos dos povos indígenas daquela região, como faz até hoje. Em menos de dois meses, o grupo a que me refiro, ainta tentou uma última cartada, conseguindo brutalmente cooptar o primeiro presidente eleito da FOIRN, que foi imediatamente afastado seis meses depois por uma assembléia extraordinária, que, na qualidade de presidente em exercício, presidi. Talvez por isso, a vingança. Neste período fundei e trabalhei durante 03 anos também como presidente da primeira organização indígena dos 4 mil baniwas do Rio Içana – Associação das Comunidades Indígenas do Rio Içana (ACIRI).

3) Até julho de 1996 estive como diretor da FOIRN ocupando todos os cargos

sempre com absoluta confiança dos índios, por meio de votos (foram 09 anos seguidos). Aliás, deixei a FOIRN antes de concluir meu último mandato, para assumir a Coordenação Geral da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), também eleito por todos os índios da Amazônia Brasileira em Assembléia Geral da Organização.

4) De 1997 a 1999 assumi a secretaria municipal de educação de São Gabriel da Cachoeira a partir do aval e articulação dos índios petistas que tinham acabado de  eleger o primeiro prefeito do partido naquele município e no estado do Amazonas. O trabalho realizado com os índios, rendeu dois prêmios nacionais para a administração na área de educação escolar indígena (Prêmio Prefeito Criança, da Fundação Abrinq/UNICEF e Gestão Pública e Cidadania da Fundação Getúlio Vargas e Fundação Ford).

5) Desde fevereiro de 2000 estou coordenando o PDPI Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas do Ministério do Meio Ambiente, um dos projetos do Programa Piloto – PPG7. Para chegar a essa função eu não fui agraciado pelo governo ou algum político. O próprio projeto não é uma esmola do governo aos índios, e sim uma conquista construída pelos índios em parceria com centenas de organizações da sociedade civil organizada, através do GTA, RMA, CNS, etc., onde muitas lideranças legítimas e expressivas participaram ao longo de quase meia década.  Graças à sensibilidade e compromisso político de várias pessoas do Ministério, sobretudo da Secretaria de Coordenação da Amazônia, está sendo possível a construção de um projeto modelo, como o PDPI, no que diz respeito a efetividade da participação indígena em projetos do governo. Não me refiro por estar na coordenação, me refiro a responsabilidade que cabe a COIAB e as organizações indígenas exercerem dentro do projeto, inclusive de indicar o coordenador, para o qual a COIAB exercita uma prática democrática de absoluta transparência, motivo que é considerada uma das organizações indígenas mais respeitadas, apesar de todas as dificuldades que todos nós conhecemos.

Será que é isso que está sendo negado e questionado? Porque a função que exerço no PDPI não é minha, mas da COIAB. Para mim, se me questionam e tiram minha legitimidade, então estão questionando e deslegitimando a COIAB. É grave se aceitamos isso como certo e verdadeiro. Para estar frente ao PDPI fui indicado pela FOIRN, depois aprovado pelo Conselho Deliberativo da COIAB (que reúne 35 lideranças de todas as regiões da Amazônia e mais a diretoria da Entidade que congrega mais de 90 organizações e 120 povos indígenas), concorrendo democraticamente com outros grandes líderes da Amazônia. Tudo isso está fartamente documentado através de jornais locais, regionais e até nacionais, desde 1987 e até antes, sobretudo nos acervos do CIMI (Porantim) e CEDI/ISA. Como o que estou escrevendo não é segredo, gostaria e de pedir a quem receber este e-mail repassar ao maior número possível de pessoas, para prevalecer a verdade.

Espero que a equipe do novo governo esteja aberta para receber contribuições de todos que tenham compromisso de mudar a história do Brasil, em particular da história humilhante dos povos indígenas do Brasil até aqui, e não se muda dividindo ou procurando chifre em cabeça de cavalo, mas ousando tentar encontrar soluções coletivas, ainda que com dificuldades e erros. Temos muitos companheiros lideranças indígenas com duas ou três décadas de experiências concretas e sabem que há muita distância entre o discurso de quem sempre viveu disso, daqueles que tiveram a coragem de por a mão na massa, sofrendo todas as discriminações e violências possíveis.

Talvez precisamos contar com aqueles companheiros que já se foram, em função exatamente de nunca terem feito jogo de ninguém, apenas o de defender o seu povo. Penso que este é o nosso único compromisso com nossos povos e com o novo governo, e não ficar brigando covardemente por cargos, funções, prestígios, principalmente quando não merecemos ter.

Por fim, companheiros, quero dizer que perseguições e difamações irresponsáveis como esta do e-mail são muito conhecidas por nós, desde que assumimos a bandeira da autonomia através das nossas organizações.  Os espaços que conquistamos dentro do movimento indígena são frutos de luta e ninguém tem o direito de destruir isso, só por mero exibicionismo. Esses espaços nunca foram negociados, eu sou testemunho disso, comprovadamente, como provei as minhas experiências. No e-mail cita a companheira Chiquinha Pareci, cuja função foi uma conquista dos professores indígenas do Brasil, que tive a honra por dez anos participar diretamente e coordenar várias

ações. O companheiro Sompré é Presidente Eleito do Conselho Deliberativo da COIAB e assim por diante. Será que é justo questionar e negar a autonomia e a democracia dos povos indígenas do Brasil, em especial da Amazônia, por simples capricho doentio de alguém. Parece que tenho forte alergia ao perigo de voltar a ver brancos dividindo índios para enfraquecer a luta dos índios. Mas acho que amadurecemos e não vamos permitir que isso aconteça.

Peço desculpas, pela extensão da mensagem, mas cansado de ver isso dezenas

de vezes e agora que estamos bêbados (empolgados) de esperança, será que não podemos ou temos direito de ter sossego e tempo de comemorar e festejar a esperança?

 

Gersem Baniwa.

 

Fonte: https://pib.socioambiental.org/en/noticias?id=6316

 

 

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