Terra Indígena Karioka - RJ

De Denilson Baniwa para o parente que vive na Terra Indígena Marte

Niterói, Terra Indígena Karioka, 03 de outubro de 2020.

Ao parente que vive na Terra Indígena Marte,
Oi, bom tempo! Seja manhã, tarde, noite ou madrugada.
Espero que hoje tenha chovido aí, nenhuma chuva ácida, nenhum temporal. Só uma chuva mesmo, sabe? Daquelas que molham o chão e refrescam a quentura. Sim, essa.
Aquela que faz um barulho quando cai na terra, que molha as plantas e tira o calor do solo. Aquela que dá esperança e não desespero. Pode ser um sol também se você está num dia gelado ou numa tempestade que não passa. Seja um dia que revigore suas energias e fé.
Queria te contar uma coisa engraçada. Na TV, está passando um programa chamado “Largados e Pelados”. O nome é engraçado, e a sinopse diz que: “a cada semana um homem e uma mulher são levados a um dos ambientes de clima mais
extremo do mundo. Os dois ficarão literalmente expostos, já que serão deixados sem comida, sem água e sem roupas”. Nesse episódio, duas pessoas são levadas para a savana da Guiana e lá, com um facão, uma pederneira e uma panela têm
a chance de provar que conseguem sobreviver sem a ajuda de equipamentos da vida na cidade. Não é o primeiro episódio que vejo, então consegui circular um padrão. Eu te conto aqui, porque é engraçado, como pode ser útil para mim e
de que forma pretendo terminar esta carta.
Bom, o padrão que percebi foi: as pessoas que desistem na primeira semana são as que chegam contando vantagem e falando sobre suas experiências nas forças armadas ou no domínio das adversidades. Os homens desistem mais rápido. A água e fogo são essenciais para manter a sanidade mental. Apesar da carne ser muito importante como fonte de proteína, a falta dela não é certeza de continuar firme no programa. As mulheres que vi nos episódios conseguem ser mais práticas e inteligentes; elas não desistem fácil e encontram soluções engenhosas. No episódio que estou assistindo agora não foi diferente: o homem desistiu no segundo dia, e a mulher está se mantendo firme, apesar das adversidades. Ela pegou um Bauari agora, um peixinho de água doce. Estou torcendo por ela.
Assistindo esse episódio, tenho pensado no que é realmente essencial na vida moderna. O que precisamos para viver bem? Talvez essa TV que está ligada não seja essencial; talvez ela me afaste ainda mais do que é a natureza, natureza da qual nós, eu e você, fazemos parte. Já faz um tempo que não pesco um Bauari. É, já faz um tempo.
Outra coisa que pensei foi: imagina se não tivesse mais floresta, nem rios, nem savanas, nem nada… como seria o programa? Talvez, ao invés de “largados e pelados” na natureza, seria “largados e pelados” no apocalipse, né? Vai saber.
Outro dia vi que os planos de morar em outros planetas estão avançando, quer dizer, essa gente lá da NASA já sabe que, pelo ritmo que destruímos tudo, não vai sobrar nada aqui neste planeta. Quer dizer, quando acabarmos tudo por aqui, vamos acabar o que tem em outros planetas. Descobriram ouro e diamante em Marte, é uma nova corrida do garimpo. A Serra Pelada Marciana. É o que temos planejado. Então, fiquem alertas, os terráqueos não são confiáveis. Eu te conto mais…
Aqui, onde estou, chama-se Brasil. Viviam aqui cerca de três milhões de parentes meus, era uns mil povos diferentes. Hoje sobraram trezentos e cinco povos e aproximadamente oitocentos e noventa e sete mil pessoas. Somos aqui 0,47% da população desta fronteira chamada Brasil. É o que sobrou do contato com o outro mundo. Fico pensando como será o contato aí com vocês, mas, pelo que leio das notícias aqui, o objetivo é apenas um: explorar e dominar, o que não foi diferente do contato aqui.
Aqui, nós, os indígenas, estamos cada vez mais lutando por uma volta ancestral, sabe? Como uma volta a um tempo antes da colonização, mas sabemos que é impossível. Então, vivemos numa certa redução de danos. Redução de danos da colonização.
Ou como eu, conversando com amizades, cheguei à conclusão de que é um retorno à terra. Terra essa que chamamos de comunidade, território e memória. É isso: aqui estamos no retorno da memória. Espero que você e seu povo não tenham que passar por tudo o que passamos aqui. Para isso, eu desenhei alguns códigos que servem como modelo e modo de pensar a vida e a caminhada do meu povo e, também, alguns desenhos que apresentam este planeta para você, caso, quando você venha nos visitar, não tenha mais o que temos hoje: florestas,rios, oxigênio, animais, vida.

Grande abraço! Nós nos vemos no Universo!

Do amigo e parente,
DENILSON BANIWA

Fonte: carta retirada do livro Cartas para o Bem Viver

Carta aos indígenas de Marte.

Terra Indígena Karioka, outubro de 2020.

Disponível no livro Cartas para o Bem Viver

CARTAS PARA O BEM VIVER

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