Ameríndia, 9 de agosto de 2020
Mãe… Pai… cadê vocês? Sabem que dia é hoje?
É nosso o dia, e apesar dos tempos obscuros; precisamos comemorar a nossa resistência! Vocês me ensinaram isso e o que eu aprendi, passo para as crias das minhas crias.
Faz tempo que a gente não se vê, nem se abraça. A situação não está fácil p’ra ninguém. Até parece um fim de mundo, como dizem; pois uma doença (nem quero dizer o nome) se espalhou pelo mundo: os hospitais estão abarrotados de gente, principalmente as mais idosas. O pessoal da Saúde orienta pra ficar em casa e quando houver extrema necessidade de sair: usar a máscara. Eu sei que vocês estão atentos às recomendações e que ao Grande Espírito; vocês estão intercedendo por nossa família, nossos parentes, nossas lideranças, nossas aldeias. Esqueci não, Pai, o canto que carrego na memória (desde menina) faz parte da nossa sobrevivência/resiliência:
“Eu tava sentado na Pedra Fina
O Rei dos Índios, eu mandei chamar.
Caboca Índia, Índia Guerreira,
Caboca índia do Juremá”.
Quem está na companhia dos Encantados não se sente só. Mantenho a crença, do nosso jeito; alimentando as boas lembranças do convívio, do Bem Viver com os antigos, com os meus filhos, com os amigos e os parentes de Norte a Sul, de Leste a Oeste.
Não sei se é impressão, mas parece que o tempo da distância deu uma esticada e digo mais: sei não. Desconfio que nem mesmo o telefone com a mais avançada tecnologia seja capaz de encurtar essa aflição que está pesando em cada um de nós.
Mas é preciso ter paciência pra entender o tempo das coisas. Acho que você pensou isso, agora. Paciência para discernir, para exercitar a intuição desde sempre. Sabedoria/intuição ao caminhar pelas matas ou pra sentar nas pedras à beira do rio; intuição/sabedoria em cada passo dos pajés, das pajés e aprender com os guardiões e as guardiãs da mata sobre um mundo habitado por espíritos; um mundo formado por palavras e deuses e deusas; um mundo encantado dos povos indígenas.
A saudade é grande. Metade do ano já se foi, mas perdura o tempo dos abraços, quando estivemos juntos, viajando por Ameríndia. Agora estamos longe uns dos outros; porém tão logo acabe esse confinamento, a gente vai ter abraços e xêros. Prometo.
Há poucos dias precisei sair, fazer umas comprinhas no mercado; pois não tem feira aqui, onde moro. Liguei pra vocês, mas era tanto barulho de carro, moto e confusão na rua, como se não bastasse o problema do celular sem sinal. Mas isso é o de menos. Pior mesmo foi deixar a Aldeia e vir pra cidade, batalhar por emprego, estudar e driblar os problemas de saúde e uma porção de coisas ruins que deixam a gente no desamparo. E se a gente pede que respeitem nossos direitos vem a resposta imediata: “se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come”. Foi isso que ouvi de uma vizinha que desrespeitou o nosso jeito de ser e de viver. Ouvi desaforos. A gente não deixa a Aldeia por querer, simplesmente. As circunstâncias obrigam: desemprego, doenças, preconceito, perseguição…, mas não esmoreço e nem esqueço das lições de encorajamento:
– Nunca esqueça o caminho de volta!
Esqueço não, Pai. E a propósito do caminho de volta, peço um favor: ao ler esta carta pra minha Mãe, evite comentar as passagens tristes; fale que alimento a esperança de voltar pra casa e de vê-la recuperada do glaucoma. Você sabe que ela é muito atenta às coisas que eu escrevo. Diga-lhe o de sempre: que eu me orgulho das minhas raízes, de ser o que sou: Potiguara, filha de Tupã.
E antes que eu me esqueça, fale pra Mãe que estou sempre em contato com os meus filhos. Olhe um fragmento do comentário de Agnes a respeito da nossa origem. A minha caçula escreve bem:
“Minha mãe me chama de negríndia, sou mistura de preto sarará com indígena e essa mistura me faz honrar e ter orgulho da minha ancestralidade e de quem vou me tornando, pois tô sempre pronta pra mudar: já fui muitas e agora estou me encontrando em novo projeto que, apesar de poucos recursos, já começa cheio de poesia no nome […]”
Veja também as palavras da sua neta mais velha. Copio um trecho do afeto que Ana expõe num cartão-postal repleto de desenhos:
“Oi, Mainha, tô aqui ouvindo o barulhinho da água caindo na fonte, abaixo da janela. Quero dar continuidade a ela com você: plantar, escolher novas pedras e flores…
Aqui, vai pra você uma lembrança do aniversário de Nina, pra aquarelar a paisagem linda que também acho tua cara.
Beijos e saudades sempre”
Do meu filho, compartilho algumas linhas da história que ele está escrevendo; pedaços de memória sobre uns dias que Fabiano andou pelo roçado com você, meu Pai:
“Lembro as férias que passei por lá. Acordava antes do sol nascer e o acompanhava na caminhada de horas da casa ao roçado (acho que não chegava a meia hora, mas na minha cabeça as caminhadas também não tinham fim). Lá no roçado seguia meu vô, eu também com minha peixeira na cintura, colhendo a macaxeira que ele tinha plantado”.
Pai… Mãe…, embora vocês não apreciem falar por telefone; fiz um áudio curtinho pra quando vocês sentirem vontade de ouvir a minha voz. Assim, a gente vai driblando o desassossego em meio ao isolamento, enquanto vocês escutam os recadinhos que a gente, aqui em casa, preparou com muito carinho pra vocês. E, pra não perder o caminho de volta, mantemos a nossa Resistência; entoando o que aprendemos nos rituais de Toré:
“Sou Tupã, sou Tupã. Sou Potiguara.
Sou Potiguara nessa Terra de Tupã.
Tenho arara, craúna e xexéu, todos os pássaros do céu
Quem me deu foi Tupã, foi Tupã, sou Potiguara”
Pai… Mãe… recebam esta carta como um escrito do meu afeto, respeito e minha gratidão.
Sempre,
GRAÇA GRAÚNA (Indígena potiguara/RN)
Fonte: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/livro/cartas-para-o-bem-viver/