Queridos bispo-irmão Pedro Casaldáliga e companheiros do MST,
Paz e Bem!
Escrevo-lhes destas terras marcadas a ferro e fogo pela violência e pela resistência e pelos cantos de esperança. Achei por bem mandar estas notícias da situação aqui na Colômbia, onde estou desde o dia 12 de fevereiro. Afinal, sempre que as pessoas ligadas aos movimentos sociais e de Igreja descobrem que eu sou brasileiro logo, perguntam pelo Movimento Sem Terra (MST) e por dom Pedro Casaldáliga. Lembro que em 2000, quando estava em Bogotá para o lançamento do Relatório “Colômbia Nunca Más”, li uma mensagem de solidariedade que Casaldáliga havia mandado, e o auditório da Universidade Nacional lotado se abriu num caloroso aplauso. Os cristãos comprometidos com aquela Igreja Popular ou uma sociedade nova pregadas pela Teologia da Libertação tem um carinho e uma admiração muito grande por vocês, pelo modo como colocam-se ao lado dos pobres da América Latina e levantam-nos a lutar por seus direitos. Eu sou aqui apenas o porta-voz de uma mensagem.
Falando da porta de entrada, Bogotá é uma cidade moderna com um centro comercial bem arrumado e sofisticado, e também fortemente militarizado. É bonita, principalmente no Centro Histórico, a pesar de muito poluída. Como outras tantas metrópoles deste continente, tem uma enorme periferia, onde se amontoam os pobres e os deserdados do centro. Entre eles estão os “desplazados”, que chegam expulsos do campo e das regiões de conflitos mais intensos. Eles sao mais de 3 milhões em todo o pais. Outros estão nos países vizinhos. Só no Equador, por exemplo, eles são 500 mil. Vítimas do Exército, da guerrilha ou dos “para” (paramilitares), são sobreviventes de uma guerra louca que já tem quase 50 anos. Em geral, são pessoas traumatizadas pelo horror do que viram ou sofreram.
As maiores atrocidades nesta guerra são atribuídas aos paramilitares, que promovem massacres nas pequenas vilas de camponeses, com pesadas armas de fogo, trucidam mulheres, homens e crianças ao facão ou até com motosseras. Já foi bastante denunciado que eles agem livremente com o aval do Estado, sob o olhar do Exército, ou, o que não é incomum, agem conjuntamente. Como podem ser clandestinos e agir à margem da lei grupos que usam uniformes, ocupam 4 milhões de hectares de terra que usurparam dos camponeses e usam até helicópteros? Seu objetivo não é tanto combater a guerrilha, mas a população civil (índios, camponeses, operários ou estudantes), vistos como a base de apoio da guerrilha. Vem daí a crueldade com que agem contra este povo, que não tem nada a ver com a guerra. Os combates entre Exército ou paramilitares e a guerrilha são até esporádicos, mas os massacres e os assassinatos de trabalhadores e líderes sociais de oposição são constantes.
Nem nas cidades os “desplazados” estão livres da guerra. Bairros periféricos são controlados também pelos “para”. Em um desses lugares, escutei de moradores que ali, depois das 21 horas, eles impõem o toque de recolher, e passeiam livremente pelas ruas encapuzados. Gostam de dizer que “os bons se deitam antes das 21 horas, e os ´ruins´ nós os fazemos ´dormir”. Pessoas que vieram do interior expulsos pelos paramilitares, acusados de serem simpatizantes da guerrilha, dizem que não podem entrar nesses bairros, pois correm risco de vida, uma vez que já estão “marcados”.
Na verdade, a paramilitarização da sociedade colombiana é parte da estratégia política do Estado e das classes dominantes, submetidas incondicionalmente aos ditames do governo dos Estados Unidos. Os paramilitares estão em todos os espaços, não só nas aldeias camponesas: nas rodovias e nas regiões de exploração mineral, garantindo o negócio das grandes empresas; nas universidades, infiltrados de modo a identificar e perseguir líderes estudantis de oposição; estão no Congresso Nacional, onde seriam 40% dos parlamentares. É conhecida a trajetória do presidente Uribe, ligada ao surgimento e a sustentação desses bandos.
A premiada escritora colombiana Laura Restrepo declarou a um jornal da capital que é um paradoxo que, enquanto outros países da América Latina estão buscando saídas democráticas e menos autoritárias , a Colômbia esteja em movimento contrário. “Nós somos a vanguarda da volta-atrás”. Disse ainda que é inaceitável que o fascismo esteja se estabelecendo desta forma no país, onde os paramilitares tomam os campos, as cidades, o parlamento e até a presidência da República. A complacência dos Estados Unidos e do Governo colombiano com esses grupos indica uma clara opção para frear os processos democráticos.
Assim, mesmo que haja eleições regulares, o que se vê é o desmonte da democracia. Nas cidades menores, os “para” ameaçam fazer massacres se aparecerem votos contra Uribe e seus candidatos. É assim que o presidente garante desde já a sua reeleição.
Estas informações estão confirmadas no Relatório de 2005 do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, lançado semana passada. E mais, ali se denuncia a expansão dos paramilitares na atividade política institucional, agora com a chamada “desmobilização” e “reinserção”, que não está garantindo a justiça e nem a reparação. Basta lembrar que existe a possibilidade legal de que eles fiquem sendo proprietários legais de parte das terras que roubaram. É uma falácia a sua desmobilização, pois eles continuam nos mesmos lugares e fazendo os mesmo serviço sujos contra líderes sociais e opositores do regime. A diferença é que agora são “legais”. O Relatório denuncia ainda o Exército pela prática do metralharem, a partir de helicópteros, povoados de civis, sob a argumentação de que escondem guerrilheiros.
Para completar o serviço desses esquadrões da morte, o Governo instituiu uma rede de espiões que também estão em todos os lugares. São os “um milhão de amigos” (Roberto Carlos é muito popular aqui, mas não merecia esta homenagem), que podem ser pequenos comerciantes, taxistas ou pessoas comuns, que são premiadas para delatar. E não é difícil que por algum desentendimento ou vingança banal alguém denuncie o vizinho como colaborador da guerrilha. E aí, vem prisão, tortura ou desaparecimento. Por isso as pessoas desconfiam umas das outras. Quanto menos falar, melhor. Afinal, nunca se sabe com quem se está falando. Nesses contexto, reuniões de associações ou de comunidades de base são sempre suspeitas e muito difícil de serem realizadas. Mas eu soube de algumas pequenas e teimosas experiências de resistência, que vou detalhar em outra carta.
Saindo de Bogotá, fui de ônibus ao Sul do país, passando sempre por belas paisagens de montanhas e vales e muitas vilas e cidades. Entre Pasto, a capital do departamento de Nariño, e Ipiales pude contemplar as pequenas porções de terra (fincas) dos camponeses, que antes da abertura de mercados produziam trigo em abundancia, mas hoje estão em decadência, pois já não tem para quem vender a produção. Eles temem que as coisas piorem ainda mais com a aprovação do Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos. Este Tratado ainda não foi fechado devido as acomodações que estão sendo feitas para atender ao agronegócio. Os interesses e a vida dos camponeses nem estão em questão.
O amigo Jairo Rocero, que me guiava na viagem, apontava no horizonte os vulcões Chiles, Cumbal e Galeras, brancos de neve no cume, num raro momento em que as nuvens os deixavam à vista. Todo orgulhoso – e com razão -, ele dizia “aqui se vê todas as tonalidades do verde”, referindo-se ao verde mais vivo das pequenas plantações ao nosso lado, até o verde azul-claro já quase no topo dos montes.
Além da exuberante beleza natural da região, o que mais me cativou foi a sua gente, de uma resistência inquebrantável e de uma simpatia comovente. Infelizmente nós sabemos muito pouco da Colômbia (e da América latina toda), e as poucas informações que recebemos nos vem das agências do norte, que nos inculcam aquela visão estereotipada do país de narcotraficantes e da guerra. Não conhecemos, por exemplo, a história dessa tradição de resistência, que vem desde as lutas indígenas contra os conquistadores, passa por um dos primeiros territórios livres das Américas, o “Palenque” (espécie de quilombo) La Matura, dirigido pelo negro africano Dionísio Biojó, que foi executado pelos espanhóis em 1621, sem esquecer as batalhas no período da Violência (1949-53), quando foram mortos aproximadamente 300 mil pessoas, entre tantas outras lutas que esse povo tem travado.
Meus novos amigos me falavam o tempo todo: diga aos brasileiros que a Colômbia não é só narcotráfico e guerra, mas aqui temos uma cultura bonita e diversificada, temos trabalhadores honestos e lutadores e temos uma juventude e uma gente que quer outra Colômbia, sem guerra e sem drogas. E eles estão certíssimos. Os camponeses e os colombianos que encontrei são bastante alegres, gostam de dançar e de contar piadas. Estão sempre nos convidando para beber um “tinto” (gole de café em quantidade bem maior do que no Brasil). Só uns 2% da população do país estão de alguma forma ligada às drogas. Isso é muito diferente do Brasil? Os grupos armados são minoria. A maioria da população entra nessa guerra apenas como vítima.
Os brasileiros conhecemos pouco da América Latina, e os latino-americanos conhecem pouco o Brasil. Pude observar essa distância quando escutava um grupo de jovens recém saídos da universidade, que cantavam canções de protesto, lembrando artistas do México à Argentina e o Chile, com uma familiaridade incrível. Era como se todos fossem cantores de um mesmo país. Não conheciam músicas de protesto de nenhum brasileiro, e eu conhecia só algumas daquelas que cantavam. Não é só questão de língua. Nós não ouvimos os cantores de outros países latino-americanos porque não temos acesso a eles, pois se quisermos comprar, não os encontramos nas lojas. Com eles ocorre o mesmo. Nestes dias, o grande cantor e compositor cubano Pablo Milanés, junto com outros astros da “canción protesta”, fez um show para multidões em Bogotá.
Depois, foi para Quito e outras capitais do continente. O Brasil provavelmente está fora. Do mesmo modo ocorre com a música de Mercedes Sosa, Victor Heredia ou Silvio Rodríguez. Da minha parte, para ajudar a derrubar essa barreira, deixei de presentes aos jovens um CD de Kanindé (não conhecem? Corram para ouvir), com uma seleção de boas músicas brasileiras na nossa língua portuguesa.
Nas reuniões de camponeses, ouvi histórias de líderes que estão na luta nos processos organizativos desde os anos 60. Alguns já foram presos, torturados ou ameaçados de morte inúmeras vezes. Ou tiveram que se refugiar em outras cidades ou até no Equador, para retornar quando as coisas acalmassem. Falaram que muitos amigos seus do começo das mobilizações já não estavam para contar a história também. Mas estes sobreviventes conservam o objetivo de organizer seus companheiros, para defender a permanência na terra, ou a sua reconquista, para os que já a perderam. E há muitas famílias que sobrevivem como diaristas, trabalhando nas fazendas para ganhar algo como 6 reais por dia. Quase nada. Eram estes “sem-terra” que mais se entusiasmavam quando perguntavam sobre o MST e a sua luta no Brasil.
Marcou-me profundamente conhecer Rita Escobar, uma dessas líderes camponesas “sem-terra”, cujos tataravós foram assassinados barbaramente nas guerras passadas, pré-1940, enquanto defendiam suas terras e suas vidas. Eram índios Pastos. Rita se diz “indígena-campesina”. Por isso, ela não tem muitos parentes, além dos irmãos. Conta-os nos dedos. Seu esposo foi morto faz dois anos, “vítima da intolerância que reina neste país”, diz. Mas ela está longe de ser uma derrotada. Ela foi lançada candidata a deputada federal pelos movimentos camponeses e pelo Aico.
Na reunião de lançamento de sua candidatura, no seu município de Espino, Rita recebeu o apoio de muitos outros líderes camponeses e indígenas. Até eu, como “representante do Brasil”, dei um recado, mostrando que os laços entre as lutas que travamos aqui em nosso país e as lutas dessa gente nos transforma num só povo. Rita falou firme contra o TLC, o governo autoritário e assassino de Uribe e contra as tantas mortes do seu povo. “O Exército, os guerrilheiros e os paramilitares levam nossos filhos para a morte. Isso tem que parar. O dia em que a Colômbia for governada por uma mulher, essa guerra vai ter que acabar, porque nós não vamos mais permitir que nossos filhos sejam mandados para a morte”. As eleições parlamentares serão dia 12 de março próximo, e além de Rita concorrem para deputados federais e senadores outros camponeses e índios.
Apesar de saber que no passado muitos candidatos de esquerda se lançaram e foram assassinados (um partido inteiro foi exterminado), apesar de saber que os poderosos neste país usam normalmente a violência da guerra suja para eliminar quem se apresente para atrapalhar seus planos, esse povo bravo continua persistindo e lutando. A eles os meus melhores sentimentos e desejos de vitória.
Ao me despedir de todos eles, deu uma vontade enorme de ficar ou de voltar. E eles me fizeram prometer que eu voltaria, e que não voltaria só. Repartir essa experiência com vocês é uma forma de fazer o convite. Para lembrar, Belchior, “faz sol na América do Sul”, e nossos irmãos nos esperam no coração da Colômbia.
Agora tenho que viajar para outra região. Nas próximas semanas eu escreverei mais.
Abraços e saudações latino-americanas.
Florêncio Vaz, do povo indígena Maytapu, PA, é frade e ativista do movimento indígena da Amazônia. É formado em Ciências Sociais, mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ, professor de Sociologia na UFPA e doutorando em Ciências Sociais/Antropologia
Fonte:
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=2949&alterarHomeAtual=1