Depoimentos e exigências da assembleia de chefes indígenas para o Presidente Ernesto Geisel
Ante a iminência de ver o novo projeto de Decreto de Emancipação que “regularizará” o Estatuto do Índio assinado por vossa excelência, viemos respeitosamente cientificar o senhor presidente dos problemas levantados, estudados e concluídos nesta assembleia.
Tendo sido encaminhado a vossa excelência o Projeto de Decreto de Emancipação, deixamos aqui o nosso parecer, o parecer do índio. O único indivíduo que não foi convidado a dar seu parecer a respeito da emancipação que o vai atingir.
Antes de tudo, queremos relembrar trecho da carta de Andila Inácio Kaingang, que vossa excelência bem deve conhecer. Hoje, nesta assembleia, tornamos a dizer as mesmas coisas, apenas tomamos alguns dos seus pensamentos como nossos.
Permita-nos dirigir este documento em nome dos índios que habitam o imenso território brasileiro.
Senhor presidente, não seria talvez por nosso povo falar e entender somente sua língua materna e não compreender estes gritos de paz e compreensão. Não, senhor presidente, temos certeza que o nosso povo entenderia essa mensagem, embora em outras línguas, como entendeu a de paciência até agora, gritada nos nossos ouvidos, paciência esta que chega agora aos limites, como chegaria a de qualquer povo, fosse qual fosse o estágio de civilização.
Senhor presidente, vossa excelência há de convir que o sangue do nosso povo não o mais pode ser contido nas veias, vendo que as terras restantes, comparadas com o imenso território brasileiro, que tínhamos no passado e pleno domínio de posse, estão sendo usurpadas pelos brancos.
O que mais nos deixa perplexos é que neste estado de coisas é que se lança o Projeto de Decreto de Emancipação, quando sabemos que vários artigos da nossa lei e o Estatuto do Índio não foram cumpridos.
O que mais chamou a atenção e que tem sido objeto de debates e denúncias no seio de várias entidades de âmbito nacional é o seguinte: “O Poder Executivo fará, no prazo de cinco anos, a demarcação das terras indígenas ainda não demarcadas” (artigo 65).
Assim como a opinião pública condenou essa emancipação, também nós, em nome da comunidade indígena brasileira, repudiamos esta emancipação. Que ela seja afastada do vosso gabinete e que sejam levadas em consideração nossas exigências. Que seja cumprido este item da lei que parece um dos pontos vitais que a nova lei quer evitar. Que se reconheça o índio como herdeiro e dono legítimo de suas terras e que as reservas sejam reconhecidas como propriedade coletiva das comunidades indígenas. Qualquer omissão ou falta de interesse sobre este aspecto será atitude que nos levará a concluir que a emancipação pregada pelo senhor Ministro do Interior é nada mais, nada menos uma atitude hostil e mal intencionada contra as comunidades indígenas. Portanto condenável.
Outro artigo do Estatuto do Índio diz o seguinte: “As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelo silvícola” (artigo 18).
Senhor presidente, bem sabemos o grave problema que enfrentam as comunidades indígenas que tem suas terras arrendadas pela própria Funai e que agora se vê incompetente de tirar os próprios intrusos que ela assentou em nossa área. Outras são invadidas sob o olhar pacífico, quando não com o próprio apoio de chefes de postos ou delegados regionais do órgão de proteção ao índio. Caso concreto, o de Roraima, onde o delegado da Funai permitiu os intrusos a invadirem as áreas indígenas, conforme depoimentos dos chefes indígenas reunidos em Assembleia em Surumu.
O mais grave de tudo isto é quando um ato de violência pesa sobre uma comunidade indígena que já não tem perspectiva de ver suas terras devolvidas, como ocorre com os Kadiwéu de Mato Grosso do Sul que tiveram suas terras arrebatadas com a permissão do órgão competente, a Funai, mediante arrendamentos. Estes mesmos invasores formam hoje a Associação dos Arrendatários da Reserva dos Kadiwéu, com forte aparato político regional.
O Estatuto do Índio em seu artigo 66 diz: “Órgão de proteção aos silvícolas fará divulgar e respeitar as normas da Convenção 107”. Essa convenção defende nossos mais elementares direitos e sendo o Brasil um dos signatários dessa Convenção tem a obrigação de executá-la, especialmente no que se refere a nossa liberdade de comunicação e expressão. Isto vem ao caso porque hoje denunciamos a ação policialesca que a Funai vem exercendo sobre as comunidades indígenas, proibindo os índios de participarem de encontros e reuniões. Ao que parece a Funai teme o que é dito nesses encontros onde nada mais fazemos que relatar nossas lutas e fracassos, os crimes praticados pelo branco nas comunidades nas quais cada um de nós está integrado. Um fato que marcou profundamente a nossa memória foi a dissolução da Assembleia de Surumu, em Roraima, o que contraria a própria Lei nº 5.371 de 5 de dezembro de 1967, a qual diz em seu artigo 1º, Item I, que compete a Funai “estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista”, baseada nos princípios de respeito à pessoa do índio e às instituições e comunidades tribais.
Senhor presidente, não estamos querendo ditar normas e leis, pois não somos nenhum catedrático, jurista ou teólogo, mas simplesmente queremos deixar claro as nossas exigências imediatas que nos assegura o Estatuto do Índio.
Não nos impressiona as declarações feitas pelo senhor Ministro do Interior ou pelo presidente da Funai através da imprensa, defendendo a emancipação. Porque nós, as vítimas dessa política, somos os únicos a poder dar o parecer sincero sobre o que representa esta emancipação. Porque se as palavras bonitas resolvessem o nosso problema, hoje não estaríamos em situação tão diferente daquela que o Estatuto do Índio defende. Pois a emancipação desejada pelo senhor Ministro do Interior trará a destribalização das comunidades indígenas, consequentemente a destruição coletiva e individual de seus componentes. Porque o índio tem de viver em comunidades próprias, em plena liberdade de tradição cultural e liberdade de possuir a terra.
Senhor presidente, expirado o prazo da demarcação das áreas indígenas, queremos cientificar vossa excelência que as comunidades indígenas acham-se em pleno direito de defender e desintrusar suas áreas, caso o órgão competente, a Funai, não conclua a demarcação das áreas indígenas. Concluindo que nesta data na qual expira o prazo de demarcação das áreas indígenas, exigimos que seja cumprido o que a lei manda e que seja rasgado o projeto de lei de emancipação da autoria do senhor Ministro Rangel Reis.
São os pensamentos do Índio Brasileiro, através de seus representantes hoje aqui presentes: Karipuna, Palikur, Galibi, Dessana, Apurinã, Jamamadi, Tapirapé, Xavante, Rikbaktsa, Pareci, Kaiowá, Kaingang e Guarani, no encontro realizado em Goiás, na data de 17 a 19 de dezembro, pelos representantes indígenas de Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Fonte: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Cimi-40-anos_manifesto-contra-decretos-exterminio.pdf
Original: 1978.12.19 Da Assembleia dos chefes indígenas para o Presidente Ernesto Geisel