Posto Indígena Guarita - Rio Grande do Sul

De Andila Inácio para o Presidente Ernesto Geisel

A ÍNDIA CAIGANGUE ESCREVEU AO PRESIDENTE PEDINDO SOCORRO

 

Posto Indígena Guarita, 03/08/75.

Senhor Redator,

Tendo em vista que passou o dia 31 de julho e os invasores não foram retirados, peço encarecidamente que o senhor publique em seu jornal a carta anexa.

Mandamos ao senhor porque sabemos que seu jornal é a favor do índio. Outrossim, peço-lhe que me seja enviado um ou mais exemplares do mesmo.

Sem mais, agradeço a sua atenção.

Andila Inácio

No dia sete de junho, a índia Andila Inácio, monitora dos índios Caigangues, enviou carta ao presidente da República, relatando o que chamou de “desespero de meu povo” e dizendo da esperança de que o dia 31 de julho “seja realmente o dia do povo Caigangue”. Nesse dia, terminaria o prazo dado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) para que os agricultores saíssem das terras reservadas aos índios no Rio Grande do Sul.

O prazo terminou depois de uma prorrogação anterior, e os agricultores continuam a ocupar as terras dos índios. Na semana passada, expirado o prazo, cópia da carta foi encaminhada à FOLHA DA MANHÃ. A íntegra do documento:

– Senhor Presidente: Permita-me V. Excelência dirigir-lhe esta, em nome dos índios da tribo Caigangue que habitaram toda a região sul do País, incluindo nosso querido estado gaúcho. Em primeiro lugar, ainda a apresentação: sou índia da tribo Caigangue, natural do Posto Indígena Carreteiro, município de Tapejara – RS atualmente trabalhando no Posto Indígena Guarita, como monitora bilíngüe, alfabetizando crianças índias na nossa língua materna.

– Sabedores que somos de vosso alto espírito humanitário, de justiça em prol dos oprimidos e das minorias étnicas, tomamos a liberdade de dirigir-lhe a presente, como último recurso para tentar devolver ao nosso povo a Paz e Tranqüilidade necessárias para a vida. Permitisse Deus, senhor Presidente, que todos os homens tivessem o coração e a sensibilidade do qual és dotado, que proporcionasse a compreensão de um coração selvagem, que nem todos assim o são, pois enquanto o mundo todo grita e se vangloria da Paz, Amor e Compreensão, o meu povo continua sofrendo as penúrias de um mundo muito remoto; tão bem conhecido por V. Excelência.

– Senhor Presidente, não seria talvez por este meu povo falar e entender somente sua língua materna e não compreender os gritos de Paz, Amor e Compreensão. Não. Senhor Presidente, tenho certeza que meu povo entenderia esta mensagem, embora em outras línguas, como entendeu a de paciência até agora gritada aos seus ouvidos, paciência esta que chega agora aos limites, como chegaria a de qualquer povo, fosse qual fosse o estágio de civilização.

– Senhor Presidente, V. Excelência há de convir que o sangue do meu povo não pode mais ser contido nas veias, vendo que as pequenas reservas restantes das, ou melhor, comparadas aos 8.000.000 de quilômetros quadrados da qual todo o povo índio desse querido Brasil tinha pleno domínio e posse, estão sendo usurpadas por brancos anarquistas e destruidores, fantasiados de agricultores mas de espírito de vândalos.

– Senhor Presidente, como foi divulgado recentemente e é de vosso conhecimento, um cacique dos índios Sioux há 120 anos atrás preconizou o destino e a morte das coisas de suas terras e consequentemente de seu povo, como o nosso povo o bem sente desde os remotos tempos do Serviço de Proteção aos Índios, voz esta que jamais ultrapassou além das barreiras dos ouvidos dos administradores relapsos no dever de defesa de nossas coisas e de nosso povo. Eis Senhor Presidente os resultados de tais conformismos, tem hoje o meu povo suas terras invadidas, suas florestas terminadas, seus animais extintos e seus corações dilacerados pela arma rude que é a civilização.

– Isto Senhor Presidente, para o povo branco e civilizado, como se julgam, talvez possa parecer romantismo ou coisa que equivalha, mas para o meu povo não, para ele é estilo de vida, é razão de viver e, consequentemente, motivo bastante para morrer. A invasão de nossas terras para o vosso povo tem significado simplesmente um problema jurídico, ou como quer queiram chamá-lo, para o meu povo não, são problemas que nós caigangues sentimos como feridas que nos atormentam no mais alto dos sentimentos, fazendo-nos diminuídos, oprimidos e transformando as nossas noites e vigílias na esperança de ver ao amanhecer nossas terras desocupadas pelos brancos e, no entardecer, mais um dia de desilusão, iniciando-se uma nova esperança pois a cada dia que passa sentimos o nosso sangue cada vez mais espesso e nossas veias cada vez mais finas, quando, então, muitos dos nossos encontram conformismo no terrível vício do alcoolismo.

– Senhor Presidente, V. Excelência talvez seja um dos poucos brancos que possa compreender o sentimento de meu povo, não nos dirigimo-nos a V. Excelência no sentido de recebermos mais palavras de conforto e de esperança, e sim para vermos solucionadas nossas angústias.

– Os brancos já nos tomaram tudo, e de muitos a própria razão de viver, os que ainda resistem clamam por justiça. Sei que somos uma minoria e além disso poucas condições temos de lutar, se preciso for, contra as armas, mas preferimos lutar contra as armas que cospem fogo e contra o aço branco que rasga a carne, provocando o delírio final e ver o sangue de nossos filhos derramado sobre nossa terra, do que vê-los encurralados e arrancados deste último sustentáculo de vida.

– Senhor Presidente, confiamos em vossas decisões e acreditamos que no dia 21 de julho, prazo dado pela Funai para a entrega de nossas terras, seja realmente o grande dia do povo Caigangue, pois, se assim não for, tememos não poder mais caminhar em paz e harmonia em busca da fonte para saciar nossa sede de justiça. Entenda V. Excelência que a nossa mensagem não tem no espírito o sentido de coação ou de revide, e sim o de termos a consciência tranquila e a serenidade de olhar, bem no fundo, os olhos de nossos filhos. Senhor Presidente, que Deus conduza os vossos olhos a meu povo e serenize nosso espírito.

Atenciosamente,

Andila Inácio

Monitora Caigangue

Jornal Folha da Manhã; 12 de agosto de 1975; páginas 20/21.

Fonte:  http://www.forumjustica.com.br/wp-content/uploads/2018/09/Carta-ao-Presidente.pdf

Fonte: DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE SUSANA ANDRÉA INÁCIO BELFORT. POLÍTICAS EDUCACIONAIS PARA POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: INTERCULTURALIDADE E SEUS DESAFIOS NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA. https://rd.uffs.edu.br/handle/prefix/695

CARTAS RELACIONADAS