Salto do Jacuí - Rio Grande do Sul, 15 de março de 1999. 

Da Comunidade Indígena da Borboleta para o Presidente da FUNAI

Ilmo Sr. Presidente da Fundação Nacional do Índio
Sr. Márcio Lacerda
Fax: 061 226 87 82 

Senhor Presidente, 

Tendo em vista a situação difícil em que estamos enfrentando no local em que nos encontramos, que é acampados no aeroporto de Salto de Jacuí, com mais de 200 famílias, não temos mais condições de permanecer neste local. Portanto a comunidade discutiu em assembléia geral todos os problemas em que viemos passando e optamos pela ocupação da área indígena da Borboleta, reivindicada a mais de 12 anos junto a FUNAI. E que até o momento presente ainda não foi devolvida para nossa comunidade a área acima citada. Não aceitamos mais esta morosidade por parte da FUNAI. Decidimos reagir contra esta resistência do órgão oficial criado para resolver os problemas indígenas do Brasil e que até agora muito pouco vem fazendo, a não ser empurrar sempre para frente a solução de nosso problema. 

O grupo de trabalho que a própria FUNAI criou para estudar a nossa reivindicação já concluiu que a área é nossa e que deve ser demarcada como terra indígena e os colonos e latifundiários que estão dentro de nossa terra devem ser retirados. O laudo antropológico já foi entregue para a FUNAI em dezembro passado, mas até agora não houve nenhum pronunciamento da FUNAI As conclusões do Laudo são claras e estamos de pleno acordo com elas. 

CONCLUSÕES 

1) as pessoas que reivindicam a TI Borboleta são “índios” no sentido de serem membros de populações aborígenes, atendendo ao sentido jurídico de população originária, do indianato, de pessoas de ascendência ameríndia, que possuem seus direitos originários reconhecidos pelo artigo 231 da Constituição Federal Brasileira de 1988; 

2) essas mesmas pessoas possuem direito inquestionável sobre o território que reivindicam por serem de lá originadas, da região entre os rios Jacuizinho e Caixões, afluentes da margem esquerda do alto curso do rio Jacuí. A região entre os rios Jacuizinho e Caixões, onde se instalou a Sesmaria da Borboleta e outras posses, era tradicionalmente habitada por comunidades indígenas. Além disto, posteriormente, tal região tornou-se um refúgio para inúmeros grupos indígenas, provindos de várias regiões, fugindo de guerras e invasões de seus territórios pelos colonizadores europeus. Na Borboleta, entrecruzaram-se, inclusive com o sesmeiro paulista Antonio de Melo Brabo, formando uma vasta rede familiar indígena, a qual se mantém ainda hoje ligada por uma extensa rede de parentescos, reivindicando os direitos originários aquelas terras por se considerarem indígenas, descendentes dos “antigos troncos”, dos “antigos bugres”. Esses velhos eram considerados os donos legítimos daquelas terras, “apesar de nunca terem um papel”. Muitas famílias que ainda habitam aquelas terras apesar de expropriadas e viverem hoje somente mais nos “perau”, se consideram donos, por descendência desses velhos, e reivindicam seus direitos. Centenas de famílias que habitam fora da área, em periferias de várias cidades do Estado, também reivindicam esses direitos, por se considerarem descendentes indígenas expropriados ilegitimamente daquelas terras. Esta expropriação é um fato ainda não totalmente consumado. Estende-se desde finais do século passado até os dias de hoje. A maioria desses descendentes expropriados, nasceram e se criaram dentro da área. Outros que lá não nasceram receberam de seus pais os relatos de como estes tiveram que sair e as várias formas utilizadas para isso. Os descendentes indígenas, portanto, perderam a posse de suas terras através de violências e atos ilegais; 

3) pela contabilidade efetiva, são três mil pessoas a terem seus direitos restituídos pela retomada de posse permanente da Borboleta como Terra Indígena; no entanto, uma contabilidade especulativa permite pensar que sejam mais de cinco mil os que possuem direitos originários sobre ela, muitos dos quais ainda hoje vivem dentro da área limitada pelo perímetro reivindicado;  

4) a área territorial de direito tradicional é de quarenta e oito mil, setecentos e quarenta e um hectares (48.741 ha ou 487,41 quilômetros quadrados): 

5) os modos tradicionais de existência, que elas e seus ancestrais possuíam, sofreram forte abalo depois de efetuada a quase completa decomposição do ambiente natural pela exploração comercial da região; por outro lado, a manutenção das estratégias tradicionais de utilização dos recursos naturais é a forma mais adequada de ocupação humana da região do Alto-Jacuí, principalmente tendo em vista sua inserção na área contemplada pelo Projeto Pró-Guaíba; 

6) apesar de obrigado por inúmeros, sucessivos e seculares dispositivos legais e constitucionais a respeitar, demarcar e proteger as terras originariamente ocupadas pelos povos indígenas, entre eles os da Borboleta, o Estado não cumpriu com essas obrigações. Ao contrário, concedeu uma sesmaria e outras posses sobre as terras indígenas, fato que desencadeou a posteriori uma invasão generalizada na área, passando a acontecer uma série de apossamentos, grilagens, registros paroquiais de posses, tendo os indígenas paulatinamente perdido suas terras, restando-lhes ainda pequenas posses dentro da área;  

7) os direitos territoriais dos povos indígenas originariamente habitantes das terras compreendidas entre os rios Caixões e Jacuizinho estava já garantido, em lei, desde o Alvará de 1/4/1680, confirmado pela lei de 1755 Pombalina de 6/6/1755, pela Lei 601/1850, pela Constituição Republicana de 1891, pelo Decreto 8.072 de 20/6/1910, o qual foi reafirmado pelo Decreto 736 de 6/4/1936, pela Lei 6.001/1973 e por todas as demais constituições republicanas (1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988). Todas essas legislações garantem os indígenas na posse permanente de suas terras, as quais não podem ser alienadas, sendo esses direitos imprescritíveis; 

8) estando ainda localizada no Rio Grande do Sul, essas terras ainda estavam protegidas por vários decretos estaduais (3.004/1922; 4.734/1931; 7.677/1939) que inclusive garantiam a propriedade dos índios sobre essas terras; 

9) as terras da Borboleta também não poderiam ter sido alienadas, ou apossadas por terceiros pelo fato dos indígenas serem legalmente equiparados aos menores de quatorze anos, de 1831 a 1916, e aos menores de 18 e maiores de 16 anos de 1916 a 1988, porquanto contra menores não corre a prescrição, sendo assim nulos todos os atos e títulos que transmitiram essas terras a terceiros; 

10)a posse permanente das terras da Borboleta está garantida por um grande número de famílias indígenas que ainda se mantém sobre essas terras; contudo, a não existência da posse permanente sobre determinadas áreas daquelas terras não poderá ser alegada para negar o direito indígena uma vez que foi por violência e outras ilicitudes que essas posses foram retiradas aos indígenas, não podendo tais atos serem convalidados. A que se proceder a um estudo minucioso, através de um grupo de trabalho para a realização do Levantamento Fundiário, que mostrará que muitas áreas de terras da Borboleta não possuem títulos de posse; 

11) cabe ao órgão de proteção oficial, a FUNAI, promover a demarcação das terras reivindicadas, garantindo-as à posse permanente daquelas comunidades, por serem terras tradicionalmente ocupadas. Os ocupantes não indígenas de boa fé devem ser indenizados e reassentados; 

12) Em função da extrema precariedade de vida das famílias acampadas no Salto do Jacuí, torna-se medida urgente o levantamento fundiário buscando inclusive identificar possíveis áreas devolutas dentro da TI Borboleta para assentamento imediato, minimizando tais precariedades;  

13) Ainda tendo em vista esta realidade, indicamos o estudo de uma possível interdição de áreas de terras dentro da TI Borboleta para o mesmo fim; 

14) Como levantamento Socioambiental (este estudo não foi realizado pelo GT) indicamos como referência os estudos realizados pela Sra. Sílvia Pagel, já apensados ao processo Administrativo 000842/87, que trata da regularização da TI Borboleta; 

15) ao longo de um ano e meio de trabalhos, o GT acompanhou a dramática situação em que vivem os acampados reivindicantes da TI Borboleta; por isso indicamos como iniciativas de extrema urgência, a melhoria do atendimento no que se refere às cestas-básicas, medicamentos, assim como melhorias na infra-estrutura do acampamento (transporte, água, lonas plásticas, saneamento, saúde); é urgente também a prestação do amparo institucional do órgão indigenista federal, no que tange às dificuldades enfrentadas pelos descendentes em suas relações com a sociedade e poderes instituídos.”  

Cada dia enfrentamos maiores pressões dos prefeitos da região e dos fazendeiros que estão sempre nos ameaçando. Por causa de tudo isto é que nós ocupamos a nossa terra e daqui não vamos mais sair. Nossa luta é pacífica, pois estamos ocupando uma terra que é nossa de direito. Não queremos conflito, mas não aceitamos mais a demora. São mais de 12 anos de lutas e dois anos acampados sem alimentos suficientes, sem água e sem medicamentos. Precisamos também de alimentos, cestas básicas e medicamentos, urgentemente, pois nossa alimentação vai durar só poucos dias. 

A comunidade está decidida a não sair mais daqui. Em nossa ocupação temos 1.000 pessoas e mais 1.000 pessoas estão prontas para acampar imediatamente junto se for preciso. Convidamos também o Senhor para nos fazer uma visita em nosso acampamento para conhecer de perto a nossa realidade e as nossas justas reivindicações. 

 

Assinam esta as lideranças do acampamento da comunidade Kaingang da Borboleta.

 

Fonte: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/campanha-pela-demarcacao-da-terra-indigena-da-borboleta

Original: 1999.03.15 Da Comunidade Indígena da Borboleta para o Brasil

 

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