Aldeia Nova Esperança, setembro de 1996

Do povo Yawanawá para a FUNAI

 

Exmo, Sr Júlio Gaiger,

O povo Yawanawá vem através da sua organização, informar como o nosso povo está passando, e ao mesmo tempo solicitar as providências sobre o assunto ora relatado, que é o problema grave que estamos tendo com a Missão Novas Tribos. É importante que o senhor saiba que em fevereiro deste ano estive em Brasília, em audiência com o ex-presidente da FUNAI, e avisei que teríamos problemas na área. Retornei e tentei resolver, mas as coisas tem piorado muito. Por isso, venho solicitar à Presidência da FUNAI a retirada da missão da área indígena do Rio Gregório, pelas razões que explico neste documento.

O povo Yawanawá pertence o tronco linguístico Pano, descendente dos Incas. Com uma população de 420 pessoas, vivem as margens do Rio Gregório, afluente do Rio Jurua, no município de Tarauacá- AC, Área; Área de 92.589 hectares, demarcado pela FUNAI em 1984, regularizado, no cartório do município.

Características: Dominamos a língua Yawanawá; A tribo toda fala português; Mantemos nossos costumes tradicionais. Ex: festas, curas e uso de ervas medicinais; Estamos caminhando para a nossa autonomia econômica, mantendo dois projetos de desenvolvimento na área, em relação direta com empresas que financiam as atividades de plantio de urucum e da produção de couro vegetal, sem a intermediação de qualquer organização indigenista, pois mesmo tendos aliados que nos ajudam em questões sociais fazemos questão de manter relação direta com quem trabalhamos; Temos um projeto social para a nossa comunidade que envolve a formação de um posto de saúde com o apoio da Aveda, já em andamento, e de educação com o apoio da CPI-Acre. Pretendemos poder sustentar essa estrutura com nosso próprio dinheiro, dentro de um ou dois anos, sem pedir nem dever nada a ninguém. Contamos com aliados fortes no Brasil e no exterior mas mantemos nossa total independência. Possuímos máquinas e logo vamos ter energia solar na aldeia, contudo com alta tecnologia sem perder nossa tradição.

A maioria dos Yawanawa seguem a tradição, e 10% da aldeia são protestantes. Desde que retornei ao meu povo, em 1992, assumindo meu papel de chefe da comunidade e liderando o meu povo na construção da aldeia Nova Esperança e dos trabalhos que temos desempenhado com tanto orgulho, o meu povo que se encontrava disperso pelo rio e pelas cidades do Acre retornaram e estamos revivendo os tempos em que tínhamos saúde, orgulho

substituindo gente da aldeia e alimentando a dependência. E assim entendemos que nunca vamos ter um conhecimento para cuidar de nosso próprio povo.

O senhor ficou sabendo, através de cartas que mandamos, da maior crise que tivemos na nossa história: em março deste ano culminou a crise espiritual que abalou nosso trabalho conforme cartas que mandamos para o senhor. Nós tivemos que resistir muito, enquanto esses missionários andavam pelas cidades do Acre dizendo que estávamos endemoniados porque eu, liderança ligítima dos Yawanawá, era o diabo. Em janeiro, quando retornei de uma pequena viagem, tinha um casal de missionários lá que tinham entrado à minha revelia. Como estávamos muito assustados porque nunca índio nenhum tinha visto um problema igual aquele que a gente estava enfrentado, convidamos pastores da Deus é Amor porque eles trabalham com exorcismo e conseguiam resolver o problema. A missão Novas tribos ficou muito revoltada porque tínhamos levado outros crentes lá, mas Deus é Amor pelo menos fez o trabalho a convite da comunidade e foi embora, sem tentar se instalar lá dentro. Como eles ficaram desmoralizados porque não conseguiam curar ninguém, eles também acusaram o pastor da Deus é Amor de ser ‘’do demônio’’.

O fato é que nós, os Yawanawá, sofremos demais com isso mas resolvemos o problema internamente. Pensamos muito, em tudo que podia estar contribuindo para o problema. Ficamos quinze dias em reunião, ouvimos cada pessoas da comunidade. Jejuamos, e resolvemos que precisamos de um tempo, sem nenhuma religião interferência na vida interna da comunidade, até que estejamos firmes no nosso caminho.

Este ano vamos ter que dar conta do prejuízo físico que tivemos: o atraso de nossos roçados e da produção de urucum. Estamos muito mais unidos ainda do que antes de crise. Sabemos o que queremos, apesar do atraso da safra do couro vegetal, do urucum, e da nossa lavoura. A própria FUNAI prometeu ajudar, já que a nossa cooperativa ficou a zero, e até agora estamos aguardando esses recursos para que o trabalhado da aldeia seja retomado integralmente.

Enfim, estamos num momento ainda delicada, e não estamos agüentando esses missionários nos desrespeitando, maltratando, nos chamando de safados, perseguidores de missionários, pedindo pros Katukina não se misturar com a nós, não nos receber na cada deles, forçando uma divisão que nunca existiu. É uma pena, Dr, Júlio, que o senhor ainda não tenha conversado com o meu povo. Em fevereiro avisei ao ex-presidente que o problema estava grave. Dia 7 de setembro tivemos uma reunião de entendimento com os Katukina e chegamos a seguinte conclusão: para continuarmos vivendo unidos íamos solicitar a retirada dos missionários da aldeia. Só que os missionários falaram que nem a FUNAI tiraria eles de lá, a não ser o

E união como nossos antigos, Dançamos, cantamos, e praticamos nossos rituais e falamos nossa língua.

Há três décadas que os missionários protestantes vivem na nossa Área. Em 1987, por decisão da comunidade, solicitamos a saída dos pastores da Aldeia Yawanawá, antigo seringal Caxinawá. Como são duas aldeias na reserva, os missionários se instalaram na outra aldeia próxima, na mesma Área, onde estão criando um grande problema. A razão principal de termos expulsado a Missão da nossa aldeia, é porque eles não respeitam as nossas tradições, a qual, é garantida pela constituição do nosso país. Eles dizem que o nosso mariri (festas) é coisa do demônio e que o nosso cipó, bebida que usamos para curar pessoas doentes de nossa Aldeia, é diabólico, e também foram contra a criação de nossa pequena cantina, que para nós é se libertar dos patrões seringalistas, que sempre nos escravizaram. Não apoiaram a demarcação da terra quando eu e outras jovens lideranças na época, nos chamando de comunistas porque queríamos defender nossos direitos. Portanto acreditamos que eles não estão lá para nos ajudar e sim para prejudicar o nosso povo.

Eles se alojaram na aldeia dos Katukína, onde instalaram posto de saúde e escola, estudaram a língua, e hoje tem um (o pastor Geraldo) nos Estados Unidos traduzindo a blíblia para a língua dos Jatukina. Acontece que há dois anos o filho deste pastor (Ascati) se formou lá na terra dele e ficou no lugar do pai, e tem feito de tudo para forçar a entrada na nossa aldeia porque precisa de uma aldeia dele mesmo para trabalhar. Desde então os problemas pioraram muito, com eles fazendo tipo de pressão pra jogar os Katukina contra nos.

Acontece que os Katukina vivem na nossa porque há um bom tempo porque o meu avô se casou com uma Katukina, e nós sempre tivemos boas relações. Os Katukina são nômades e muito tradicionais. Mesmo que os pastores nunca consigam converter ninguém, deixam eles ficarem lá porque precisam do remédio de malária e do avião que transporta os doentes. Nós, os Yawanawá, também precisamos, mas estamos lutando para ter nossa independência. E não queremos ficar ouvindo que só tem remédio se deixarmos pastor entrar. Quando precisamos do avião, pagamos aos pastores e pagamos caro (os mesmos R$ 650,00 que é o preço de mercado na região). Os remédios também são cobrados dos Yawanawá.

Nós ainda não chegamos aonde queremos, que é termos nossa própria sustentação. Mas temos o orgulho de dizer que na nossa área, já temos microscópio, já temos gente treinada, e conseguimos apoio sem nenhuma cobrança para o nosso posto de saúde funcionar durante mais um ano, quando vamos comprar medicamentos com nossa própria produção sem ter que pedir pra ninguém. Um outro fato que nos deixa curioso é que os missionários nunca preparam índios da nossa área para dar conta do atendimento de saúde e educação, sempre

Cacique tradicional dos Katukina, Muikã, e o Presidente da Missão pedir pra eles saírem. Acontece que o referido cacique recentemente foi embora pra morar em outra aldeia por decisão própria e a comunidade Katukina apontou o Orlando Assis Katukina como líder, que é perseguido e criticado pela própria missão.

O que tinha que ficado acertado com o ex-presidente era que a FUNAI proveria apoio na área de saúde para os Katukina com a garantia de medicamentos e transporte aéreo para substituir o avião da Asas do Socorro. Já estamos treinando um agente de saúde Katukína em Rio Brando e os próprios Yawanawá podem realiar exames de malária. Temos três microscópios na nossa aldeia e podemos doar um para os Katukina e treoná-los para realizar exames de malária. A comissão Pró-Indio-Acre formou monitor de educação Katukina e apoia a escola na área, que os missionários tem atacado também, pois acham que compete com a escola-bíblia deles.

Como houve a mudança de presidente e ainda não conversamos diretamente com o senhor, queremos a sua posição clara e queremos também esclarecer que a situação está grave e que os missionários vão ter que sair da área antes que aconteça uma tragédia com os missionários, envolvendo as duas comunidades.

Confiamos que o senhor vá apoiar os Yawanawá e os Katukina, já que tem uma longa história de trabalho como indigenista, advogado e defensor de nossa causa. Não podemos ser tratados como índios que saem por ai pedindo sem pensar num futuro autômo e digno. Temos consciência de que somos um modelo e que ainda temos algum chão pela frente mas que estamos dando um exemplo para outras comunidades de que é possível viver com dignidade em nossa terra, sem nos isolarmos e usando tecnologia a nosso favor, sem perder nossas tradições e nossos costumes. É isso que está em jogo, e é por isso que quanto mais gente se aproxima do nosso objetivo maior fica a pressão contra nós. E é por isso que temos que tomar uma atitude séria e firme. Se nem os nossos aliados tem qualquer permissão para se meterem em nossas questões internas, não vamos deixar que a Missão o faça.

 

Biraci Brasil Yawanawá

Coordenador da O.A.Y.E.R.G

 

Cc Ministério da Justiça, Ministro Nelson Jobim

Ministério da Educação, Coordenadoria de Apoio ás Escolas Indígenas, Sra Ivete Campos

Procuradoria Geral da República, DRA Márcia Domedila Lima de Carvalho

Fonte: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/carta-funai-do-coordenador-da-oaeyrg-relatando-problemas-enfrentados-pelos

Original: 1996.09 – Do povo Yawanawá para a FUNAI

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