Boa Vista, 17 de fevereiro de 1988.

Do Conselho Indígena do Território de Roraima para a FUNAI

Nós, Conselho Indígena do Território de Roraima (CINTER), reunidos em Boa Vista de 15 a 17 de fevereiro de 1988 para refletir sobre a situação das nossas comunidades e avaliar os resultados da Assembléia Geral dos tuxauas em Guruma (08 – 10 de janeiro de 1988), enviamos-lhe esta CARTA ABERTA para criticar o que o senhor falou em entrevista pública, chegada ao nosso conhecimento através do jornal “A CRÍTICA” de Manaus, em data 21.12.1987.

Apesar das bonitas declarações do senhor, a situação de nós índios de Roraima está na pior, especialmente no que diz respeito aos nossos parentes YANOMAMI que estão sendo massacrados por mais de 20.000 garimpeiros. O que está acontecendo aqui em Roraima é tudo o contrário daquilo que o senhor falou aos jornalistas.

As nossas exigências NUNCA são escutadas nem tão pouco atendidas pela FUNAI, a começar pelo senhor que fica escondido na sua toca de Brasília,, fora do alcance de nós Índios, mudo como um tatu, sem ter nem a coragem, nem a educação de responder uma palavra se quer as nossas muitíssimas cartas. Durante o ano de 1987 foram-lhe enviadas mais de setenta cartas, telex, etc… e o senhor nem respondeu a meia dúzia delas!

Será que o Senhor não leu ainda o nosso telex do dia 11 de fevereiro de 1988 em que denunciamos o que aconteceu na Área DEMARCADA de São Marcos, no dia 24 de janeiro de 1988? Dez (10) parentes nossos da maloca de Perdiz que estavam caçando e pescando no rio Parimé, foram algemados por um dia inteiro, chutados, espancados, rebencados e ameaçados de morte pelo capataz Jorge e pelos vaqueiros do fazendeiro Apolinário, junto com 4 agentes da Polícia Civil? Estes covardes chamaram as nossas crianças de bastardas e as nossas mulheres de prostitutas dos padres. Cadê as providências, cadê uma sua palavra de solidariedade e apoio?

Lembramos ao Senhor que aos 13 de julho de 1987, na maloca Santa Cruz, dezenove (19) parentes foram presos pelas polícias militares e civis, e todos fomos selvajamente espancados, inclusive crianças e mulheres grávidas. NÓS esperávamos que o senhor viesse até Roraima para ver nossos sofrimentos. Naquela ocasião nós nos revoltamos porque cansados de esperar inútilmente soluções da FUNAI. E desde o começo dos anos setenta que os nossos parentes estão denunciando à FUNAI a apressão que estão sofrendo por parte do Sr. Newton Tavares da Fazenda Cuanabara e nunca foram ouvidos. ATÉ AGORA A FUNAI NOS ENROLOU, NOS ENGANOU, SÓ MENTIU PRA NÓS, NUNCA AJUDOU DE VERDADE OS ÍNDIOS, NUNCA SE PREOCUPOU COM OS SOFRIMENTOS DOS PARENTES DA MALOCA SANTA CRUZ.!

De nada serviu a Portaria PP/3644 do senhor que interdita a área, chamada XUMUNUETAMU, “vetando ingresso de não índios sem expressa autorização da FUNAI/5a SUER”. São os índios que não podem andar, caçar e pescar em SUAS TERRAS, enquanto que os jagunços do Sr. Newton Tavares continuam ANDANDO LIVREMENTE, ameaçando e espancando os parentes. A tal de “DESCENTRALIZAÇÃO DA FUNAI” piorou o que já era ruim. O Sr. Esmeraldo Silva Neves, Administrador da FUNAI em Boa Vista, aos 10.01.1988, em Surumu, frente a todas as lideranças indígenas do Território, declarou que não tem nenhum poder, que não pode decidir nada, que só obedece as ordens de Manaus e Brasília… e assim, só fica nos enrolando com papo furado! O Sr. Sebatião Amancio da Costa, Super-Intendente da FUNAI de Manaus, amoitado que nem viado acossado pelos cachorros, nos despreza e ignora completamente. Este senhor, conhecido por todos nós pelo seu autoritarismo grosseiro, desde quando era Delegado em Boa Vista, está demais preocupado em:

ganhar dinheiro favorecendo as madeireiras, as mineradoras como a Paranapanema, a Gold Amazon, a Taboca e outras que estãp saqueando as riquezas dos nossos parentes do Alto Rio Negro e dos Waimiri-Atroaris, que ninguém sabe se ainda existem, isolados como são pelos jagunças da Mineradora Taboca e por coniventes funcionários da FUNAI;

ganhar dinheiro desviando verbas do Projeto Calha Norte, não dando nenhuma explicação, aceitando nenhum debate com nós índios, que somos os diretamente atingidos;

aliciar e dividir as lideranças indígenas como fez com os nossos parentes Álvaro Tucano, Benedito Machado e outros do Alto Rio Negro, tornando-os traidores dos seus povos;

perseguir os padres, caluniando-os, expulsando-os das nossas comunidades contra nossa vontade, quando todo mundo sabe que os padres são nossos amigos e aliados, que sempre nos respeitaram e apoiaram, e que por isso são caluniados e perseguidos por fazendeiros, garimpeiros, mineradoras e agora também pela FUNAI:

permitir a entrada e favorecer a permanência de 20.000 garimpeiros na ÁREA INTERDITADA dos nossos parentes Yanomami, O Senhor Amâncio, em fins de agosto de 1987, em lugar de mandar prender os garimpeiros que massacraram quatro parentes Yanomami, mandou prender os padres da Missão Catrimani que desde 1965 – são 23 anos – assistem e defendem os direitos dos parentes Yanomami. Amoitado em Manaus, nunca teve peito de cumprir seu dever e enfrentar os garimpeiros armados, mas permitiu que se espalhassem por toda a área INTERDITADA.

A entrega em Brasília da medalha ao mérito indigenista ao Sr. Sebastião Amâncio da Costa, foi uma grave ofensa a todos nós índios da Amazônia, que repudiamos totalmente a atuação do Responsável da 5a Superintendência da FUNAI de Manaus porque CONIVENTE com os interesses dos garimpeiros, das madeireiras e das mineradoras que decretaram o nosso extermínio.

A FUNAI de Manaus e de Boa Vista está lotada de funcionários incompetentes, omissos e corruptos, inimigos declarados dos índios, interessados somente em seus salários e diárias. Os servidores da FUNAI nos desprezam, criam confusão dentro das nossas malocas, destroem nossa cultura e nossa organização indígena.

Não iremos nunca esquecer a chacina perpetrada por um servidor da FUNAI, em fevereiro de 1984, no Posto Indígena do rio Ericó: querendo se aproveitar de uma menina Yanomami de 12 anos, acabou matando-a junto com um primo e ferindo gravemente seu futuro esposo! O Senhor acha que iremos ainda tolerar a presença em nossas comunidades do Sr. Életon S. Lima, que foi expulso da comunidade de Boca da Mata por comportamento imoral, que ajudou a Polícia Militar a prender os parentes da maloca de Santa Cruz em julho de 1987, e que foi ouvido dizer pelo Conselheiro Orlando: “Eu quero que esses Índios morram”?

Chega de sem-vergonhices! Estamos cansados de denunciar ao Senhor e a todas autoridades dos brancos os abusos contra o nosso povo e não receber nenhuma proposta. Nossa paciência está acabando. Estamos cansados de ser explorados, de ver nossos direitos desrespeitados até pela FUNAI, que usando o dinheiro público deveria nos ajudar e proteger, e que, pelo contrário, tudo faz para nos prejudicar, para nos dividir, para nos acabar. As boas intenções, as bonitas declarações, as promessas proclamadas pelo Senhor à imprensa nacional no dia 19 de dezembro de 1987, não servem para esconder a corrupção, incompetência, a ineficiência, a omissão, o empreguismo que reina na FUNAI do Amazonas e de Roraima.

Não queremos a implantação de novos Postos Indígenas em nossas comunidades. Será que as divisões e os estragos feitos pelos Postos Indígenas  já não são suficientes? Muitos dos nossos velhos ainda lembram com saudade do Marechal Cândido Mariano Rondon, verdadeiro amigos dos índios, sinceramente preocupado com a preservação de nossa cultura e a demarcação de nossas terras. Nós sentimos em nossa pele que a FUNAI de hoje TRAIU OS IDEAIS do Marechal Rondon. As palavras bonitas não enchem nossas panelas, nem devolvem nossas terras e nem pagam a dívida histórica que o Senhor afirmou o Brasil tem para conosco Índios.

Com esta CARTA ABERTA queremos cobrar do Senhor aquilo que nossas comunidades estão cobrando de nós: o cumprimento das exigências formuladas no documento final da Assembléia Geral dos Tuxauas em Surumú (10.01.1988):

  1. Queremos a retirada IMEDIATA de todos os garimpeiros que invadiram a área Yanomami PAAPIU (Rio Couto de Magalhães) e solicitamos que o Senhor demarque URGENTEMENTE esta área.
  2. Pedimos a demarcação da ÁREA ÚNICA RAPOSA-SERRA DO SOL- SURUMU, que seja demarcada como ÁREA INDÍGENA e não haja diminuição de tamanho no processo de demarcação. Pedimos o agilizamento dos processos de demarcação das áreas delimitadas e a homologação das terras demarcadas.
  3. Solicitamos que sejam RETIRADOS TODOS OS POSSEIROS que, tendo sido indenizado, se encontrou ainda em áreas indígenas demarcadas.
  4. Exigimos a LIBERAÇÃO DA ÁREA DE SANTA CRUZ, para os parentes plantar, criar, pescar e transitar livremente. Eles continuam sendo oprimidos e ameaçados de morte pelos jagunços do Sr. Newton Tavares. Queremos a DEMARCAÇÃO IMEDIATA desta área.
  5. Pedimos que não sejam implantados Postos Indígenas dentro das malocas, antes que o processo de demarcação seja terminado, para que a nossa organização indígena não seja perturbada e as nossas lideranças (Tuxauas e Capatazes) enfraquecidas.
  6. Exigimos o RETORNO DOS MISSIONÁRIOS que foram EXPULSOS das áreas indígenas: os padres Guilherme Damioli, João Saffirio e a Irmã Florença. A. Lindey que trabalham na área Yanomami, e os padres Jorge Lima e Jorge Dal Ben que trabalham na área Macuxi. Eles estavam fazendo um bom trabalho junto as comunidades indígenas.

Pedimos desculpa pela franqueza com que lhe expusemos nossos sentimentos. Nós, Índios de Roraima, que estamos sendo enganados e explorados por autoridades e servidores da FUNAI, temos o direito de manifestar-lhe a trágica situação em que vivemos.

CONSELHO INDÍGENA DO TERRITÓRIO DE RORAIMA

 

Fonte: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/carta-aberta-ao-sr-romero-juca-filho-presidente-da-funai-em-brasilia

Original: Conselho Indigena de Roraima (CINTER) para FUNAI

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