Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1987

De Eliane Potiguara para o Brasil

Companheiro,

Recebi uma carta do meu tio, o cacique João Batista Faustino, da aldeia S. Francisco (POTIGUARA).

Esta pessoa está lutando há anos pela integridade étnica desta comunidade. Quando os índios não queriam mais dançar TORÉ, ele incentivava, fazia festa, promovia encontros. Quanto aos índios que vêm para o Rio de Janeiro (o concentrado na Ilha do Governador) ele vem esclarecendo para que não saiam de suas áreas, pois o retorno é doloroso. Alguns índios estão num processo psicológico e neurológico decadentes. O estado de saúde é péssimo, assim como a higiene e condições de vida. Com a falência dos Estaleiros EMAQ muitos POTIGUARAS que lá trabalhavam, desnorteados, tem sentido vontade de voltar, mas impedidos pelo próprio estado de insegurança em sua aldeia indígena. 

Agora, recebo esta carta de meu parente que respeito e que me solicita apoio: veja em anexo, trecho da carta!

“OS ÍNDIOS ESTÃO ARRENDANDO TERRA AO BRANCO!!!”

O que é isto? É o resultado de miséria e abandono que se encontram as aldeias POTIGUARA da Baía da Traição. Os índios recebem cachaça para trabalhar para os latifundiários. As mulheres e crianças perambulam pela cidade balneária burguesa sofrendo as piores discriminações, até porrada levam quando insistem que lhes dêem alimento. A prostituição tem crescido. Os homens caem bêbados pelas estradas prontos a serem atropelados. Outros submetem-se ao trabalho escravo no cultivo da cana-de-açúcar.

Há 150 anos a igreja reacionária proibiu-nos de falar a nossa língua submetendo nossos antepassados a castigos corporais como palmatórias e castigos no milho. Antropólogos depenaram da historiografia Potiguara. Hoje, recebem seus direitos autorais e aos Potiguaras nada é dado.

Tanta gente explorou a nossa área. Agora que não possuímos mais esse “ethos tribal” de que muita gente precisa para poder ganhar dinheiro em suas análises e teses, hoje, só nos restam os ossos de uma cultura, e o esquecimento aos nossos parentes. E mais que isso, a colonização da Família LUDGREEN hoje, Casas Pernambucanas) foi o que mais aniquilou a integridade étnica dos Potiguaras.

O despretígio à área POTIGUARA é enorme: Desprestigio da parte de antropólogos, da igreja e entidades de apoio. Da FUNAI, sem comentários!  Tudo isso, quando sabemos que bons trabalhos estão sendo feitos em outras nações e basicamente o apoio tem sido maior. 

A área POTIGUARA fica tão distante quanto à área dos TIKUNAS ou MATIS. É preciso uma solidariedade de entidades, da igreja, do movimento indígena à área POTIGUARA, que comporta 4.600 índios.

João Batista Faustino que possuia lindos cabelos negros há três anos atrás, hoje está com a cabeça toda branca por dar murro em ponta-de-ca, por lutar sozinho. Muita gente diz que não se pode lutar sozinho, mas o que vejo é contrário em muitos pontos do Brasil, principalmente nas comunidades mais aculturadas.

A FUNAI nem quer saber do índio nordestino, porque é bêbado. Lançou cartilhas agora aculturando de vez as crianças indígenas nordestinas. Nós que queremos trabalhar em educação, em cartilhas, não estamos tendo apoio. O que fazer, deixar que morra o último Potiguara? Afinal Os POTIGUARAS tem sido pioneiros, até na sobrevivência numa região litorânea de fácil colonização, que vem resistindo nos últimos séculos! Um grupo de índios POTIGUARAS está sendo aliciado. por brancos para irem contra as determinações do Cacique, a maior liderança POTIGUARA. A maioria está com ele, mas o “poder” está nas maõs dos índios “Cabeças-Feitas”. Há dois anos atrás, até de assassino, Batista foi chamado e contou-me quando esteve no Rio. Envolveram-no num processo culposo que lhe rendeu uma enorme dor de cabeça.

Quando alguns Índios fazem aliança até com o diabo, quem está na cidade não pode compreender a penúria, o sofrimento, a solidão, o desprestígio, a dor de ser sua gente, sua nação esfaceladas por um processo de aculturação tão forte. E isso desiquilibra a estrutura étnica das famílias indígenas, desiquilibra o estado psicológico, emocional e físico. Esse desiquilibrio vai afetar as próximas gerações tanto para os que ficam nas aldeias, quanto para as famílias que vão em busca de melhores momentos e nunca os encontrarão em cidade grande, porque essa cidade grande só tem nos dado a prostituição pra nossa célula-mãe, E nós temos sido vítimas desse processo destruidor, mas lutaremos e brotaremos do meio dessa podridão para poder estar vivo e lutarmos sem medo, contra um regime de escravidão e violência que caracteriza esse sistema político e econômico decadente. 

Solicito às entidades de apoio ao índio, ao Movimento indígena e igreja que se solidarizem com esse problema e que interceda junto à FUNAI o resgate de 14.000 hectares e uma forma de recuperar as áreas arrendadas. E solicito também, mais apoio àquela área, pioneira um dia na AUTO-DEMARCAÇÃO das terras, à luz da polícia militar, e de um aparato de repressão que não intimidou o POVO POTIGUARA.

ELIANE POTIGUARA

Fonte: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/carta-relatando-situacao-dos-potiguara-segundo-informacoes-do-caciquejoao-batista

Original: 1987.08.10 De Eliane Potiguara para o Brasil

CARTAS RELACIONADAS