Aldeia Kumaruman, Oiapoque – AP, 14 de dezembro de 1976
Exmo. Sr. Presidente da FUNAI.
Gen. Ismarth de Araújo Oliveira.
Meu iayuturi (Chefe), muitas palavras tenho passado para o papel, palavras que saem do fundo do meu iererũ (coração) de velho índio brasileiro, palavras muitas vêzes amargas como a semente do makokô mas que refletem minha preocupação pelo destino de minha patũ (tribo). Muitas tuná (águas) são passadas desde que os Galibis do rio Uaçá guardaram as puruá (flechas) e mantêm um bom relacionamento com os caliná (civilizados) que muitas das vêzes se aproveitam dêsse relacionamento e da ingenuidade ainda existente na alma do meu povo, para explorá-lo, enganá-o de tôdas as maneiras possíveis e induzi-los a vícios difíceis de serem abandonados, como o da cachaça. Quantos civilizados de Cassiporé, do Oiapoque e mesmo militares de Clevelândia do Norte, melhoraram suas vidas vendendo gêneros, bugigangas e cachaça aos índios ao prêço insuportáveis, tirando do índio até a sua última galinha, seu último grão de xipipó (farinha) e em muitas das vêzes dormindo com sua mulher ou sua filha prá terminar de saldar as dívidas dos gênero e objetos comprados? Incontáveis caliná (civilizados) meu Presidente, que êstes olhos cansados ainda guardam as imagens e a memória os seus nomes. Hoje não se usa mais armas para defender direitos mas sim palavras que se transformam em documentos e que asseguram êsse direito. Os tempos mudaram. As minhas palavras mando passar para a máquina, para serem melhor compreendidas e se tornarem documentos perante o meu Presidente, documentos que chamam a atenção do meu iaputuri (Chefe) para as até hoje esquecidas tribos da fronteira: Galibi, Palikur e Caripuna. Documentos que mostram as coisas que estão erradas ou que pedem coisas justas e possíveis ao Grande Chefe, para dar tranquilidade ao povo indígena, ainda mais nêste momento em que Uará, a ave agourenta, sobrevoa as nossas çurá (casas). Mas meu iererã (coração) já entristeceu demais e não é de tristezas que hoje falo e escrevo para me queixar de alguma coisa. Tudo já foi relatado nas cartas que mandei para o Grande Chefe. Agora só me resta esperar respostas providências para meus pedidos e do meu povo.
Hoje desejo mesmo é agradecer ao meu Presidente, em nome de meu povo, por ter mandado para junto de nós o Sr. Frederico Oliveira, Chefe do Posto panapen (corajoso), que tem enfrentado tôdas as dificuldades existentes em nossa área devido a falta de recursos, muitas das vêzes abandonado pela própria Delegacia da FUNAI, que pouco está ligando para nós índios galibis, pois nada produzimos; que demonstrou ser mais um hanrê (irmão), ao passar a compartilhar de nossos sofrimentos e alegrias; que sózinho nos tem defendido contra todos os caliná (civilizados) que procuram prejudicar meu povo; deu uanú (luz) para nossos olhos nos mostrando o que estava errado; que reforçou a nossa união como patũ (patũ) (tribo); que procurou despertar de nossos iererũ (corações) o uatê (a chama) do orgulho como raça indígena, mostrar que não éramos inferior aos caliná (civilizados) como muitas vêzes pensávamos; que nos mostrou que unidos progrediríamos mais rápido e que o costume de cruzar os braços e tudo esperar das “autoridades de fora, quando haviam muitas coisas que nós mesmos poderíamos fazer unidos, era prejudicial para nós; e tivemos maior ânimo em nossos mutirões; e recuperamos nossa Escola que estava quase desabando como também fizemos uma série de outros trabalhos importantes para a comunidade; foi quem nos incentivou a voltarmos a fazer o “caxiri” (bebida indígena) durante os mutirões e maoris, pois os caliná/marreteiros nos induziram a abandoná-lo e usarmos a cachaça no seu lugar; foi quem nos incentivou e incentiva a plantar, além do quierê (a mandioca), o auaxi (milho) e o arroz (dorí),trazendo até sementes para plantarmos. Foi êle que conseguiu nos tirar das mãos dos caliná-marreteiros, que nos exploravam até à alma e ainda nos induziam ao consumo da cachaça, para que viciados deixassemos de lado nossos trabalhos na roça, ficássemos cada vez mais miseráveis e fracos, como realmente estava acontecendo; mas tinhamos que comprar dêles os gêneros aos quais estávamos acostumados e ao preço que cobrassem pois não havia outro lugar aonde comprarmos. Foi então que nosso Chefe do Posto nos orientou, nos reuniu e nos propôs a criação de uma Cooperativa (idéia já lançada há muitos anos atrás, entre nós, por um padre, que não vingou), com os excedentes da farinha-de-mandioca que produzíamos todos os anos e nos explicou o funcionamento dela. Aceitamos a idéia e hoje não nos arrependemos pois apesar de tôdas as dificuldades para a compra de gêneros, em Belém e o transporte dos mesmos dessa cidade até o Posto, compramos os gêneros a preços mais barato do que das casas comerciais de Oiapoque e Cassiporé, ou seja, compramos no preço mais baixo da região. Construímos a casa onde ela funciona e cada vez mais essa Cooperativa vai progredindo, vai se organizando, dirigida pelos próprios índios e tendo estatuto e ata, assim como prestando inúmeros benefícios à comunidade inclusive emprestando farinah que possui estocada, quando a comunidade necessito, sem nada cobrar por isso, etc;; Com isso os caliná-marreteiros não mais vieram à aldeia, pois seus preços não podem competir com os da Cooperativa. Foi uma idéia muito boa que se tornou real e que todo o meu povo está gostando, porque está sendo beneficiado, e não vai deixar acabar. O Sr. Frederico também tem incentivado o artesanato da tribo pois já ninguém fazia mais nada, nenhum trabalho indígena; agora todos estão fazendo caxurú (colares), curúcurú (cestos), maracá…; por tudo que tem feito êsse pitáni (jovem), pela compreensão que tem da alma do meu povo, respeito pelos nossos costumes e acima de tudo pela dedicação e lutas travadas para fazer os caliná (civilizados) respeitarem meu povo, coisa que antes não acontecia, assim como por ter me incentivado a trabalhar junto dêle, para transformarmos Kumaruman numa comunidade numa comunidade melhor, mais desenvolvida, como está acontecendo e eu e meu povo muito lhe devemos e lhe dedicamos grande respeito e amizade. E êste velho tuxaua – que já viveu no meio dos caliná e estudou com êles – que há muitas tuná (águas), desde Eurico Fernandes, não via aparecer caliná tão interessado pelo destino do meu povo, sente o coração cheio de alegria e gratidão a êste pitáni (jovem) que deixou tudo lá fora para vir se juntar a nós e se sacrificar por nós e pede ao grande Chefe dos índios que conserve êsse jovem ainda por muitos anos, entre meu povo, e pede também que seja dado a êle uma ajuda maior para continuar os trabalhos que vem fazendo, no sentido de melhorar muito mais a vida dos índios Galibis do rio Uaçá. Escrevi muitas palavras no Galibi, para meu Presidente ver que ainda guardamos na memória parte do nosso antigo dialeto.
MANOEL FLORIANO MACIAL (PANAHEN)
TUXAUA DOS ÍNDIOS GALIBIS DO RIO UAÇÁ.
MANOEL FELIZARDO DOS SANTOS (TOFEN)
AJUDANTE DOS TUXAUA DOS ÍNDIOS GALIBIS
DO RIO UAÇÁ.
Original: 1976.12.14 Dos Tuxauas Galibis para o Presidente da FUNAI