Boa Vista, 2 de dezembro de 2004.  

Das Mulheres Indígenas para Brasil

Boa Vista, 2 de dezembro de 2004.  

Denúncia da violência que nossas irmãs e filhas do povo Macuxi sofreram das mãos de rizicultores e fazendeiros, invasores da “Terra Indígena Raposa – Serra do Sol” na manha do dia 23 de novembro de 2004, e solicitação da tomada de medidas imediatas contra os autores e realizadores da violência, principalmente a imediata homologação daquela Terra Indígena.

Nós mulheres indígenas de Roraima, sofremos – mais uma vez – a fúria de empresários rizicultores e de fazendeiros armados que, junto com alguns de nossos próprios parentes, cooptados e encapuzados, na manha do dia 23 de novembro/2004 atacaram as nossas malocas (aldeias) “Jawari”, “Homologação”, “Brilho do Sol” e “Insikiran” assim como o “retiro” de “Tay-tay”, não poupando na sua fúria nem mesmo mulheres grávidas, crianças e idosos (Vide: carta aberta de 26/11/04 assinada pela OMIR, CIR, COIAB, por outras organizações e lideranças indígenas). O ataque e destruição dessas malocas foram uma ação deliberada e planejada. Ela se iniciou na maloca de Jawari, já às 06 horas da manhã, quando a maioria dos moradores desta e das demais malocas haviam saído a trabalhar nas roças, como é costume de nós, permanecendo lá apenas mulheres (principalmente, as grávidas) crianças e uns poucos idosos. Os agressores [os parentes que presenciaram a ação criminosa identificaram os rizicultores… como comandantes dos jagunços, pois, nem usaram máscara para ocultar a sua identidade] chegaram em caminhões, lotados de gente,  “pick-up” e outros carros além de tratores, armados com armas de fogo (espingardas e pistolas), paus, e moto serras. As mulheres presentes lutaram para impedir a destruição de suas casas, da escola, do posto de saúde, do “malocão” (espaço para as reuniões indígenas), mas, foram brutalmente ameaçadas (inclusive de morte), junto com seus filhos e demais presentes, sofrendo xingamento e toda sorte de humilhação.

“Foi às 06 horas da manhã e eu estava deitada ainda. Aí, o meu cunhado (que foi baleado) chegou correndo… Daí eu sair, e quando olhei… o fogo já estava queimando as casas. Aí eu peguei o meu terçado e… cerquei eles. E falei: Podem sair daqui! Se não, eu toro vocês no meio com o meu terçado! Aí eles pararam e disseram: que mulher buchudinha braba! E aí ele (um dos agressores) disse que ia me matar. Ele disse: Vou atirar em tu, com o teu filho na barriga! E aí eu disse: Pode me matar, que eu não tenho medo de morrer!… Aí eles tocaram fogo…” (Mulher indígena Macuxi, 22 anos, da maloca Jawari, casada, mãe de 3 filhas, grávida de 08 meses).

Outra irmã, que tentou impedir a destruição das casas mesmo sob ameaça constante, relata o seguinte: “…eu vi eles tirando álcool no Posto de Saúde. Aí eu vim pedir licença e pedir para eles não fazer isso. Aí eles disseram que eu não tinha nada a ver [e] botaram arma em mim né…. porque eu queria tomar o álcool que tava na mão deles. Aí eu disse: Faz o favor de deixar esse álcool, porque ele [o posto] é da nossa saúde! Aí eles disseram: Você não tem que falar! Se você falar, vai merecer uma bala! E aí me amostraram a arma deles. Eu disse: Pode me matar, que eu não tenho medo de morrer! Se eu morrer, morro na Área Raposa Serra do Sol, na minha terra! … E ele disse: Tu não tem terra nada …mulher velha safada! Eu te mato agora, … índia velha que não sabe viver!… Aí ele ameaçava: Vou te amarrar e jogar no rio, para os peixe comer! Eu te amarro com teus filhos, levo no caminhão!  … Eles queriam me dar uma surra e …. me ameaçavam que eu tava sozinha né. Que iam me matar! Botava arma por cima de mim… as minhas crianças ficaram com medo, tudo pertinho de mim… Aí, onde era o malocão, tava pegando fogo. E ele olhou para o meu filho de 11 anos e disse: Você quer que eu jogo esse teu curumim no fogo?” (Mulher indígena macuxi, mãe de 7 filhos [a mais velha de 13 anos] da maloca Jawari, esposa do Tuxaua da aldeia).

Na maloca Jawari, todas as casas foram totalmente destruídas. Aquelas com cobertura de palha foram incendiadas com tudo que tinha dentro, e o “malocão” (casa de reuniões) foi derrubada com moto  serra e à força do trator. Em total, eram 23 casas, entre moradias, o posto de saúde, a escola, uma “casa de apoio”, a igreja e um deposito. Neste momento, as parentas estão vivendo embaixo de mangueiras, cajueiros e oliveiras. Além dos pertences, instrumentos de trabalho, e os alimentos, até os documentos pessoais foram queimados. Muitas reses “sumiram” dos pastos naturais da comunidade.

Nas demais aldeias, o estrago não foi diferente. Na maloca “Homologação”, onde os criminosos chegaram pouco depois, o tuxaua informa que, no momento da invasão, só havia duas mulheres e um homem presente. Uma das mulheres (de 18 anos) esta grávida do primeiro filho. Alem dela, havia uma menina de 13 anos e o professor da aldeia que – durante toda a “ação” – ficou ameaçado com duas armas apontadas para o seu peito. Os demais habitantes tinham saído para uma pesca coletiva, porque no dia seguinte haveria “reunião regional”.

“Eu estava com minha irmã de 13 anos. Eu estava fazendo meu caxiri. E chegaram bem perto de mim com o caminhão e desceram logo aí… dizendo que era para eu tirar as coisas de dentro da casa. Eu disse que não ia tirar não!… Ai, essa minha irmã parece que estava meio assustada… Eles perguntou dela, onde que nós morava. Ela disse: Nós moramos aqui mesmo! …. Eles disseram que aqui é área dos fazendeiros. Começaram a falar que era para nós sair. E aí também, eu não falei nada pra eles. Aí eles andavam com bujão de gasolina e tocaram em cima das casas … Nós estamos vivendo debaixo dessa lona! … Queimaram as fraldas, … Ficamos assim, tudo queimado! …Eu tava com dor na barriga [anunciando a hora do parto!]. Mais, nessa hora passou a dor toda, e ainda to por aqui! Não sentir dor, mais nada! … As casas, as roupas, os objetos foram todos queimados” (Mulher indígena Macuxi, 18 anos, casada, grávida de 9 meses, está esperando a hora de ter o filho).

Todas as 07 moradias, inclusive a escola e o posto de saúde, foram totalmente destruídos (queimadas). Os integrantes da comunidade estão vivendo debaixo de pés de Caimbé e Uixi, cobertos com lonas de plástico.

Também na maloca “Brilho do Sol”, para onde se dirigiam os criminosos depois, os habitantes tiveram suas casas queimadas, junto com todos os seus pertences. Relata uma mulher que esta com um Bebê de um mês: “Eu estou doente aqui. Estou de resguardo do meu filho. Eu teve ele aqui. Espantaram tudo. Eu diz: Se eu tivesse dentro, com meu filho, se eu não saísse fora para segurar peito pro meu filho. Eles me podiam queimar lá dentro. Eu não saia não!” (Mulher indígena Macuxi, mãe de 9 filhos). Neste momento os moradores da maloca “Brilho do Sol” estão vivendo embaixo de árvores, coberto com plástico, entre eles 15 crianças, que presenciaram as ameaças aos seus familiares, a invasão da sua aldeia a mão armada e a destruição dos seus lares.

Finalmente foram atacados também a maloca Insikiran e o “retiro” Tay-tay, onde só havia uma mulher indígena Macuxi com os seus 5 filhos,  entre 11 e um ano e meio: “Era oito horas quando eles chegaram .. Meu marido tinha saído para fazer outro retiro … Quando já chegaram pularam do caminhão .. varias pessoas, todas armadas com espingardas na mão e cinco mascarados… Meus filhos .. disseram: Que vai ser de nos agora? Ah, eu não sei não. Falei para eles: vamos embora morrer, pelo menos tudo junto… Nos ficamos tudo junto na cama. Quando chegaram na casa, começaram a botar espingarda encima de nós… Aí pedi que não fizessem nada com nós, e nem com os meus filhos… Eles ficaram direto com espingarda encima da gente. Ai logo, logo tocaram fogo. Não deixaram ninguém nem tirar nada de dentro da casa não. O meu filho de um ano e seis meses foi queimado, o pé dele. Eu me queimei tentando tirar as coisas de dentro da casa… Eu me senti muito nervosa. Eu fiquei assim, sem saber, nem o que fazer. Só pensava nos meus filhos”.

Em vista de tamanhos crimes, tamanho sofrimento de nossas irmãs e filhos, nós, mulheres indígenas de Roraima, exigimos das autoridades competentes:

– Imediata homologação da “Terra Indígena Raposa – Serra do Sol” em área única!

– Imediata retirada de todos os invasores das nossas terras!

– Garantia de nossos direitos humanos, e paz em nossos lares!

– Punição imediata e exemplar daqueles que invadem nossas malocas, incendeiam nossas casas, atiram em nossos pais, irmãos e esposos e nem poupam nossas crianças!

Estamos sofrendo esse tipo de violência faz muito tempo. Mas, – já basta! Não podemos seguir vivendo assim! Não podemos criar nossos filhos nestas circunstancias. Pedimos a ajuda solidária de todas e todos para poder viver, trabalhar, e criar os nossos filhos em paz!

Organização das Mulheres Indígenas de Roraima – OMIR

Ivete da Cruz

Coordenadora da OMIR

Lavina Salomão

Vice-Coordenadora

Fonte: https://cimi.org.br/2004/12/22630/

 

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