Dourados, 08 de outubro de 2016.

Do Povo Guarani Kaiowá e outros Povos para o Brasil

Nós, professores kaiowa e guarani e pesquisadores indígenas e não indígenas de todo o Brasil reunidos em Dourados (MS), entre os dias 06 e 08 de outubro de 2016, durante o 1º Seminário Internacional Etnologia Guarani – Diálogos e Contribuições, promovido pela Faculdade Intercultural Indígena e pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), vimos a público nos manifestar a respeito das graves ameaças que atualmente pairam sobre o povo Guarani e que podem representar um ataque definitivo aos direitos dos povos indígenas em todo o Brasil, garantidos pela Constituição Federal.

Neste mês de outubro, uma sentença da Justiça Federal, em primeira instância, determinou a anulação do processo administrativo que reconhece a Terra Indígena Panambi – Lagoa Rica, do povo Guarani-Kaiowa, em Douradina (MS). Essa decisão representa mais um passo rumo ao estabelecimento de um equivocado “marco temporal”, que definiria o direito ou não dos povos indígenas a reivindicar suas terras como de ocupação tradicional a partir do fato de uma comunidade estar instalada em dada área em 05 de outubro de 1988 – quando foi promulgada a nossa Constituição.

Essa formulação ignora o fato de que centenas de comunidades indígenas espalhadas pelo país foram retiradas compulsoriamente e com o uso da força de áreas que ocupavam em décadas anteriores, muitas vezes por particulares que contaram com o apoio de funcionários públicos – indigenistas, policiais ou mesmo militares –, quando não por iniciativa direta do próprio poder público. Essas comunidades não só resistiram a esses atos de exceção, como persistiram, por décadas, denunciando essa situação e buscando, a todo custo – e colocando em risco suas próprias vidas –, retornar para essas áreas.

No caso específico da região conhecida pelos indígenas como Ka’aguyrusu, que hoje abrange as áreas das TIs Panambi – Lagoa Rica, Laranjeira Nhanderu e Panambizinho, a progressiva expulsão das famílias indígenas aconteceu a partir de um projeto federal de colonização, a Colônia Agrícola Nacional de Dourados, entre os anos 1940 e 1960. Confinados em pequenas porções de seu antigo território, os indígenas do Panambi nunca deixaram de reivindicar ação do governo federal para garantir-lhes seus direitos sobre a totalidade dessas terras, e há documentos provando que tal resistência perdurou por todo esse período. Como condição de permanência em suas terras tradicionais, grande parte das famílias indígenas assumiu a condição de trabalhadores rurais temporários, envolvendo na derrubada da mata e na implantação das fazendas em seus próprios territórios. Via de regra, a presença indígena só foi interrompida a partir da década de 1970 quando ocorreu a mecanização completa das propriedades, que caminhou pari passu com a expulsão das famílias.

Para que se compreenda o efeito cascata que pode estar envolvido no estabelecimento do chamado “marco temporal”, é preciso ainda remontar a outra decisão emblemática anterior e que afeta diretamente o povo Guarani-Kaiowa – a anulação do processo administrativo de demarcação da TI Guyraroká, em Caarapó, pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, ocorrida em 2014. Conforme alertado por diversos juristas, ainda que não tenha poder vinculante, essa decisão cria uma jurisprudência que pode permitir a anulação de praticamente todos os processos demarcatórios efetivados em Mato Grosso do Sul desde 1988.

No caso da TI Limão Verde, do povo Terena, a 2ª Turma também decidiu pela anulação de seu decreto de homologação, datado de 2003, com base na tese do “marco temporal”, associada a uma interpretação restritiva da ideia de renitente esbulho. Na sentença, contestada em juízo pela comunidade indígena, o esbulho, exceção que não permitiria aplicar o marco de 5 de outubro de 1988, só poderia ser reconhecido caso os indígenas estivessem em conflito efetivo ou movendo ações na Justiça contra os fazendeiros naquela data exata. Agora, uma série de ações administrativas e judiciais pedem a volta à área de ocupantes não indígenas que já tinham sido indenizados e reassentados em outros locais há mais de 20 anos.

A aplicação do “marco temporal” praticamente reduzirá as Terras Indígenas em MS às minúsculas e superpovoadas reservas demarcadas pelo SPI no início do século passado – uma situação de confinamento contra a qual os Guarani-Kaiowá sempre lutaram. A remoção das comunidades que tiveram seus territórios reconhecidos desde a promulgação da Constituição resultará em catástrofe social de dimensões imprevisíveis.

Como testemunhou Leila Guarani, uma das lideranças indígenas do tekoha Yvy Katu, durante sua fala no Seminário, os Guarani-Kaiowá pretendem continuar lutando por seus direitos territoriais:

“Agora cada indígena saiu daquele chiqueiro. Aquele lugar, reserva, é lugar de bicho. Nós não vamos ficar na reserva. Agora o indígena está saindo da reserva; estamos indo para o nosso tekoha. Agora que está começando. Se for para briga, nós vamos morrer pela nossa terra. Nós já morremos bastante! Pouco a pouco, nós vamos recuperar a nossa terra tradicional, a vivência da nossa família – porque numa reserva o indígena não cabe mais. O jeito é a gente sair desse chiqueiro, procurando o nosso tekoha novamente”.

É importante entender que essas decisões não só afetam o Estado de MS, mas podem resultar numa escalada nacional que põe em risco uma parte significativa das cerca de 700 terras indígenas já reconhecidas em todo o país – sem falar em mais de uma centena de outras áreas que ainda não tiveram seus processos de reconhecimento administrativo concluído, ou mesmo iniciado.

O estabelecimento desse “marco temporal” como baliza para as demarcações impõe, em termos práticos, a revogação total dos direitos territoriais indígenas conquistados a partir da Constituição de 1988. Representa a negação completa do direito originário – anterior à própria constituição do Estado brasileiro – dos povos indígenas a suas terras tradicionalmente ocupadas.

Além de tudo, trata-se, também, de um absurdo retrocesso considerando que há menos de dois anos, em 2014, o país concluiu os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a qual, entre suas conclusões, incluiu ampla documentação – recentemente redescoberta – a respeito da violência e dos abusos e crimes cometidos contra os povos indígenas no período em que vigorou o autoritarismo no país. Segundo o relatório, tais violações, apesar de parecerem desconexas e pontuais, em verdade respondiam a um padrão estrutural e a um projeto político único: esbulhar os índios de suas terras para liberá-las para projetos de colonização, implementação de grandes obras de infraestrutura e outros.

Tendo em vista tudo isso, denunciamos que o marco temporal não tem fundamento jurídico, histórico, sociológico ou antropológico razoável e que constitui, na verdade, parte de uma estratégia de setores ligados ao setor ruralista para barrar o processo de reparação às comunidades indígenas lesadas, ao longo do século XX, por atos de exceção praticados pelo Estado brasileiro ou com a conivência de seus agentes. Clamamos, portanto, a todos os integrantes do Poder Judiciário comprometidos com a defesa do Estado Democrático de Direito que tomem medidas para barrar o avanço na adoção do “marco temporal”.

Finalmente, vale observar que aqui mencionamos apenas um dentre vários elementos de uma ofensiva muito mais ampla contra os povos indígenas do Brasil neste momento em que o país vive uma transição política tão delicada. Uma análise da atuação do três Poderes, neste momento, mostra um ataque articulado aos direitos indígenas. Enquanto o Judiciário revê os processos demarcatórios a partir do princípio do marco temporal, o Legislativo persegue profissionais e instituições indigenistas, por meio de Comissões Parlamentares de Inquérito, e discute medidas como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que representa também uma ameaça ao direito indígena ao território. O Executivo, por sua vez, atua no sentido de permitir a criminalização de lideranças do movimento indígena e promove o sucateamento da Fundação Nacional do Índio (Funai), asfixiando-a com cortes sucessivos em seu orçamento e quadro técnico e, por conseguinte, inviabilizando o cumprimento de suas obrigações constitucionais.

Conclamamos a todos os brasileiros e brasileiras para que nos empenhemos junto ao povo Guarani e aos demais povos indígenas na defesa de seus direitos, para a construção de uma sociedade justa, democrática, multicultural e pluriétnica.

Assinam:

Ademir Aquino Ximendes

Adriana Queiroz Testa CPF: 27544823857

Adriele Freire de Souza CPF:02483120148

Alenir Aquino Lemes RG: 2133904

Aline Crespe

Almir Bauler – CPF:26111055

Ana Carolina Estrela da Costa CPF: 07474107635

Ana Paula Sabino

Anari Felipe Nantes CPF:174533.721.00

Anastácio Peralta CPF: 23749121168

André Centurion CPF:01478269189

Antônio Carlos Benites CPF: 03200487135

Augusto dos Santos Ventura

Bartomeu Melià CPF: 0955281185

Beatriz Simas Silva CPF: 01061643174

Braulina Isnarde Fernandes CPF: 92394620153

Bruna Cardoso Paulo CPF: 46547196879

Caio Felipe Gomes Rojas CPF: 05217281189

Carlos Magno Espíndola CPF: 40746356153

Catia Paranhos Martins CPF:21458847803

Célia Reginaldo Faustino CPF: 28533844115

Celso Shitoshi Aoki CPF: 69818070344

Ceni Rodrigues dos Santos CPF: 800913885172

Cleberson Ferreira CPF: 03785965493

Cristina Souza

Dalton de Matos CPF: 283776868856

Daniela Jorge João

Daniela Valle de Loro CPF: 03250802670

Daniele Ibanhes Cabreira CPF: 05930577161

Davi Benites

Delfino Borvão CPF: 50639739141

Denilson L. Martins CPF: 04793079113

Denize Cáceres Nelson Lopes CPF: 95659048153

Diego Corrêa da Silva CPF: 02490964127

Diogo Oliveira

Dominique Tilkin Gallois CPF: 90398670897

Dyna Vanessa Duarte Vera CPF: 03877867162

Ebifânia da Silva Ortiz CPF:06777557164

Edemir Braga Dias CPF: 01727210085

Edimar Araujo CPF:02311597140

Edinaldo Martins CPF: 05421288402

Edir Neves Barboza

Elaine da Silva Ladeia CPF:61658936191

Elda Vasques Aquino CPF: 50606581120

Eliel Benites

Elizabeth Pissolato CPF: 53639480600

Ellen Cristina de Almeida CPF:89547349104

Elson Canteiro Gomes CPF: 2143427

Ester Salina: CPF: 03430568102

Evelyn Karine Silva CPF: 40185457894

Fernanda Casagranda CPF: 02814169157

Fernanda de Sousa Fernandes 03755669102

Florinda Souza da Silva CPF: 58231048120

Gabriel Dourado Rocha CPF:5127718

Gersen Baniwa CPF:23858354287

Giovana Simas da Silva: CPF: 02114673162

Giselle Machado Costa Fasolo CPF:83067655320

Gislaine Aquino CPF: 05028846146

Gislaine Monfort CPF: 04587185132

Giulliana Matiazzo Pessoa CPF:35139365839

Graziele C. Dainese de Lima: 34461382-3

Gregório Oliveira Pinto Barciela CPF:48470278843

Heiracles Mariano Dias Batista CPF: 447224941334

Heliodoro de Almeida CPF:01223822138

Ilma Saramago

Irenice Vitor Mendes CPF: 45259128800

Isael da Silva Pinheiro CPF: 08697845955

Isidéria Carmona CPF: 03202435167

Jaqueline de Gloria Vieira Alves CPF: 03384011139

Jéssica Souza Gomes CPF: 2074733

João Paulo Lima Barreto CPF:41315480204

Joice Bianca Foschiera de Lima CPF: 05457753107

Jonas Rossi Fontes CPF: 06348727106

Jorge Gomes CPF:6796390386

José Manoel Flores Lopes Josemar Benites

Judite Gonçalves de Abulquerque CPF: 61017639868

Juliana Benites P. Gomes CPF:01727152107

Juvenal Hermes da Silva CPF: 72785330853

Katia Regina Moura de Castro CPF: 99316803187

Kelly Duarte Vera: CPF: 05257518155

Kênia Braz Alcântara CPF:00441233104

Keros Gustavo Mileski CPF: 03731362937

Laio Guimarães Freitas CPF: 01862725101

Laura Jane Gisloti CPF: 32300494892

Lauriene Seraguza Olegário e Souza CPF: 31600772846

Lázaro Vera CPF: 03525829108

Leandro Lucato Moretti

Leif Grunewald CPF: 05806407799

Leonilda Macarenhas

Levi Marques Pereira CPF:29453364134

Lidio Cavanha Ramires CPF: 96233109191

Lívia Damiciano Cunha CPF: 12922996735

Lorena de Campos Kermessi

Lucene Almeida Vieira

Maidinha Benito Pedro CPF: 06777557164

Marcelo Camurça CPF: 71241302718

Marcelo da Silveira Campos

Marcilio Rodrigues Lucas CPF: 06793689657

Marcos Roberto Alves de Carvalho CPF:06264446912

Maria Aparecida Mendes de Oliveira

Maria de Lourdes C. Nelson CPF: 32551363187

Maria Leda Vieira de Sousa CPF:356483411-72

Mariana Gomes de Oliveira

Mariana Pereira da Silva 02356760121

Maristela Aquino Insfram: 91679699172

Marta Soares Ferreira CPF: 95426426104

Martha Jerônimo Batista CPF:03125606136

Mauricio José dos Santos Silva CPF:29411166306

Mayrlen Antonio Correia Silva CPF: 05306778143

Miguela Beatriz Peralta Moura CPF: 95657966155

Natal Gabriel Ortega CPF:46535748120

Neimar de Sousa Machado

Nilcéia Espíndola

Nivia Maria Trindade dos Santos CPF: 04324850151

Noemia Moura

Oswaldo Rolim da Silva Junior CPF33812779870

Otoniel Ricardo CPF: 85670910125

Pâmella Boni Epifânio Soares: 03142428135

Paula Aparecida dos Santos Rodrigues CPF: 35659656811

Priscila de Santana Anzoategui CPF: 00914864165

Rafael Rodrigues Cáceres CPF: 05131282128

Rafael Rondis Nunes de Abreu

Renata Castelão CPF:58022252115

Renata Lourenço

Rodrigo Amaro de Carvalho CPF: 07297799637

Romilda Martins CPF:05929842140

Rosa S. Colman CPF: 76649083100

Rosalvo Ivarra Ortiz CPF: 03983531156

Rosana Vera CPF:05645278151

Rosely A. Stefanes Pacheco CPF: 310788991-81

Rosileide Barbosa de Carvalho CPF: 92697897879153

Rossadra Cabreira

Silvana Jesus do Nascimento CPF:02461409170

Sônia Pavão

Spensy Kmitta Pimentel

Talita Lazarin Dal´Bó CPF:32635631816

Tania Milene Nugoli Moraes

Tatiana Perez Correa

Tatiana Sanches CPF:04691492135

Tatiane Maíra Klein: CPF: 36423651833

Tatiane Pires Medina CPF:04537578122

Teresinha Tantini CPF:16892305920

Valdenir de Souza CPF: 94681279153

Valdenir Romero

Valéria Mendonça de Macedo CPF: 24282299806

Vanessa Lescano Martins CPF: 04838342180

Vânia Pereira da Silva 58882057615

Vicente Cretton Pereira CPF: 0525788766

Victor Ferri Mauro CPF: 29583871869

Wagner Duran CPF:04324850151

Walterísio Gonçalves Carneiro Junior CPF: 02085734103

Fonte: https://racismoambiental.net.br/2016/10/23/carta-publica-alerta-de-emergencia-pelo-povo-guarani-e-os-direitos-indigenas/

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