Considerando a mobilização das comunidades Mbyá-Guarani, nas vontades expressas por nossos velhos, adultos, jovens e crianças em sucessivas reuniões ocorridas nos últimos anos e exigindo a atenção dos representantes de instituições ligadas ao Estado Brasileiro, no momento em que surge disposição para iniciar o processo de regularização fundiária de algumas áreas a serem destinadas à posse exclusiva das comunidades Mbyá-Guarani no sul do país – nós, representantes dessas comunidades no Rio Grande do Sul temos a manifestar o que se segue:
a) Não aceitamos que o atendimento a nossos direitos territoriais fique reduzido à criação de alguns poucos Grupos de Trabalhos (GTs) que não poderão operar de maneira isolada, mas sim respeitando nossa cosmo-visão integral de território e levando sempre em conta a auto-determinação étnica de todas as nossas comunidades;
b) Sabemos que a criação de GTs é um procedimento paliativo à resolução definitiva de reconhecimento oficial de nossa territorialidade tradicional;
c) Não aceitamos a realização de qualquer procedimento administrativo, nem mesmo a criação de GTs, que ocorra objetivando promover o confinamento sumário das comunidades Mbyá ao interior de pequenas áreas ou sua submissão à tutela dos agentes estatais, religiosos ou empresariais;
d) Não aceitamos mais o desrespeito praticado pelo indigenismo oficial brasileiro que nos tem acusado e tratado enquanto índios estrangeiros, desconsiderando a legitimidade de nossa mobilidade originária além e aquém das fronteiras nacionais criadas sobre nosso território originário, mantendo nosso direito de circular por toda cosmo-geografia Mbyá (Yvy Mbté, Para Miri e Para Guaçu);
e) Não aceitamos mais o desrespeito por parte de alguns cientistas e administradores que divulgam a falsa versão de que os atuais Mbyá não possuem ligação com os Guarani que participaram da história das Missões e da história de formação do sul do Brasil, porque nossos mitos falam da vida de nossos ancestrais nas antigas aldeias sagradas feitas em pedra (Tava Miri) e também relatam o contínuo trato que nossos ancestrais mantiveram com os portugueses e seus descendentes;
f) Não aceitamos o argumento de que serão apenas os referidos Grupos de Trabalho os responsáveis pelo levantamento de provas sobre o nosso direito de ocupação tradicional, ainda mais porque ficam restritos ao estudo de áreas demasiadamente pequenas, a serem reconhecidas depois de uma tramitação demorada e burocrática; enquanto isso, nossas crianças sofrem sem que nossos direitos originários sobre a terra sejam reconhecidos de fato;
g) A comprovação sobre a antecedência histórica de nossos ancestrais Guarani na ocupação do território aparece em qualquer livro de história e em muitos trabalhos de arqueologia, sendo verdade expressa por professores nas escolas, na toponímia das localidades, em reportagens veiculadas freqüentemente pelos meios de comunicação e dita muitas vezes pela boca de políticos e de pesquisadores, todos reconhecendo que os Guarani foram os originários ocupantes de quase todo o território do sul do Brasil e que eles foram massacrados aos milhares e expulsos para que a terra fosse ocupada por europeus e seus descendentes, cujos herdeiros compõem a população brasileira atual;
h) Exigimos também a criação de Grupos de Trabalho para avaliarem objetivamente os prejuízos pela perda e destituição de nossos direitos originários sobre a terra, para que se chegue ao cálculo do montante de indenização devida pelo Estado Brasileiro pelo sofrimento imposto a sucessivas gerações de índios Guarani sobrevivendo em regime de marginalidade, fome, doenças e preconceito;
i) Exigimos a execução de políticas compensatórias muito mais efetivas do que a mera criação de GTs que objetivam a regularização de áreas pequenas, para que o Estado brasileiro se empenhe também em mensurar o sofrimento dos povos Guarani ao longo dos dois últimos séculos e que planeje a forma de ressarcimento por esse grande prejuízo;
j) Exigimos também a indenização pelos milhares de Guarani mortos ao longo da história, compensação que deve ocorrer através da avaliação realista (feita pela criação de Grupos de Trabalho) do número de vidas perdidas entre os Guarani, para que se faça o cálculo do total de recursos necessários para indenização de nossa gente, benefícios revertidos em atendimento diferenciado de qualidade para todas as nossas demandas por terra, sustentabilidade, saúde, educação e pleno respeito por nossas referências culturais;
k) Exigimos que os critérios de “natureza livre” e de “acesso livre” reconhecidos recentemente pelo Ministério da Cultura / IPHAN dentro do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) sejam respeitados pelos demais Poderes Públicos, por instituições privadas e pela sociedade brasileira em geral, na aceitação da verdade dita por nossas lideranças espirituais: “Onde tem mata, ali é terra tradicional Guarani!”;
l) Exigimos que o critério “natureza livre” seja reconhecido para abrir a livre circulação das comunidades Guarani ao interior de áreas reservadas, sendo elas parques naturais (Itapuã, Turvo, Morro do Osso etc.) ou sítios históricos em que se sabe existirem referências sobre a antiga ocupação Guarani (incluindo cidades como São Borja, São Luiz Gonzaga, São Nicolau, Santo Ângelo, Gravataí, Porto Alegre etc.);
m) Exigimos a constituição de Grupos de Trabalho para avaliação dos prejuízos ambientais gerados pelo desmatamento, pela poluição química, pelo mau uso do solo e pela ocupação imobiliária e industrial de áreas tradicionais dos antigos Guarani, a fim de definir o montante de indenização a ser pago/destinado pelo Estado Brasileiro para programas e projetos de recuperação ambiental, principalmente nas regiões onde se localizam as aldeias Mbyá-Guarani;
n) Exigimos a constituição de Grupo de Trabalho para realizar a articulação entre todos os órgãos de fiscalização e proteção ambiental, para integrar as comunidades Guarani enquanto guardiãs dos Parques ambientais e áreas protegidas;
o) Exigimos a criação de Grupos de Trabalho para tramitar o reconhecimento pelos órgãos ambientais de nosso sistema tradicional de plantio (pela coivara) na mata e nosso direito de extração e transporte de matérias-primas vegetais e de caça, mesmo dentro de áreas protegidas;
p) Exigimos que o critério de “acesso livre” resulte na adoção de políticas de incentivos fiscais, a fim de estimular proprietários de terras a aceitarem a presença e a circulação de representantes Guarani nas áreas de mata que existirem em suas propriedades;
q) Exigimos que o critério de “acesso livre” se aplique em todos os Parques Arqueológicos e Históricos relativos às Missões, incluindo São João Batista, São Miguel, São Lourenço e São Nicolau; que também seja plenamente reconhecida a liberdade dos Guarani circularem por todos os lados das fronteiras internacionais do Mercosul;
r) Exigimos que o Estado Brasileiro destine recursos à indenização do valor comercial de todas as terras particulares tituladas que forem regularizadas à posse exclusiva das comunidades Mbyá-Guarani, a fim de ressarcir seus proprietários pela conivência e participação ativa dos órgãos oficiais (cartórios locais, Diretorias de Terras estaduais, regularização fundiária federal) na expedição de títulos privados fraudulentos e pelo pagamento de impostos territoriais sobre terras de direito originário que se fizer restituição aos Mbyá;
s) Exigimos que todo o processo de regularização fundiária da territorialidade Mbyá-Guarani ocorra através do apoio do Poder Público à articulação das nossas comunidades e de nossas lideranças espirituais e comunitárias, incluindo velhos, mulheres, jovens e crianças, ponto de partida para guiar os trabalhos de qualquer equipe de técnicos e pesquisadores não-indígenas.
Por fim, apresentamos abaixo lista das principais e mais urgentes demandas territoriais colocadas pelas comunidades Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul, todas elas precisando regularização urgente enquanto espaço de ocupação tradicional:
1) Ampliação e regularização da Terra Indígena Lomba do Pinheiro (Porto Alegre);
2) Reconhecimento, ampliação e regularização da aldeia do Lami (Porto Alegre);
3) Ampliação e regularização da Terra Indígena Cantagalo (Viamão, Porto Alegre);
4) Reconhecimento de ocupação tradicional e regularização do Parque de Itapuã (Porto Alegre) como Terra Indígena Mbyá;
5) Reconhecimento de ocupação tradicional e regularização do Parque do Morro do Osso (Porto Alegre) como Terra Indígena;
6) Reconhecimento da Ocupação tradicional e regularização de Terra Mbyá na Ponta da Formiga (Município de Guaíba);
7) Ampliação e regularização da Terra Indígena da Estiva (Viamão);
8) Reconhecimento, ampliação e regularização da aldeia (acampamento) de Capivari (Capivari);
9) Ampliação e regularização da Terra Indígena Capivari (Granja Vargas, Palmares do Sul);
10) Ampliação e regularização da Terra Indígena Interlagos (Osório);
11) Reconhecimento, ampliação e regularização da aldeia (acampamento) do Pinheiro (Maquiné);
12) Reconhecimento, ampliação e regularização da aldeia (acampamento) do Campo Bonito (Torres);
13) Reconhecimento do direito de ocupação tradicional e de acesso livre ao Parque Estadual de Itapeva (Torres);
14) Reconhecimento, ampliação e regularização da aldeia (acampamento) do Petim (Gaíba);
15) Reconhecimento, ampliação e regularização da aldeia do Passo Grande (Barra do Ribeiro);
16) Reconhecimento, ampliação e regularização da aldeia (acampamento) do Passo da Estância (Barra do Ribeiro);
17) Ampliação e regularização da Terra Indígena da Coxilha da Cruz (Barra do Ribeiro);
18) Identificação e regularização da Terra Indígena de Tapes (Tapes);
19) Ampliação e regularização da Terra Indígena Água Grande (Camaquã);
20) Ampliação e regularização da Terra Indígena da Pacheca (Camaquã);
21) Identificação e regularização como Terra Mbyá das Cabeceiras do rio Icamaquã (Santo Antônio das Missões e Rincão dos Antunes);
22) Identificação e regularização como Terra Mbyá das matas do rio Jaguarizinho (São Francisco de Assis);
23) Identificação e reconhecimento de ocupação tradicional das Matas de Mariana Pimentel (Mariana Pimentel);
24) Identificação e reconhecimento de ocupação tradicional as Matas de Ipês e Freguesia (5º Distrito de Camaquã);
25) Reconhecimento de ocupação e de acesso livre contíguo ao Parque do Taim (Rio Grande e Santa Vitória do Palmar);
26) Reconhecimento, ampliação e regularização da aldeia (acampamento) do Irapuá (Cachoeira do Sul);
27) Ampliação e regularização da Terra Indígena da Estrela Velha (Estrela Velha);
28) Ampliação e regularização da Terra Indígena Salto Grande do Jacuí (Salto do Jacuí);
29) Ampliação e regularização da Terra Indígena do Inhacapetum (São Miguel das Missões);
30) Reconhecimento e regularização da Mata São Lourenço (São Miguel e São Luiz Gonzaga) como Terra Mbyá-Guarani;
31) Reconhecimento e regularização da Esquina Ezequiel (São Miguel das Missões) como Terra Mbyá-Guarani;
32) Identificação e regularização de Terra Mbyá na Costa do rio Piratini (São Miguel das Missões);
33) Reconhecimento e regularização das matas do Caaró (Caibaté e São Luiz Gonzaga) como Terra Mbyá-Guarani;
34) Reconhecimento de ocupação e de acesso livre ao Parque Arqueológico de São Miguel Arcanjo (São Miguel das Missões);
35) Regularização como Terra Mbyá do Parque da Fonte Jesuítica (São Miguel das Missões);
36) Reconhecimento de ocupação e de acesso livre ao Parque Arqueológico de São João Batista (Entre Ijuís);
37) Reconhecimento de ocupação e de acesso livre ao Parque Arqueológico de São Lourenço Mártir (São Luiz Gonzaga);
38) Reconhecimento de ocupação e de acesso livre ao Parque Arqueológico de São Nicolau (São Nicolau);
39) Identificação e regularização do Mato Castelhano (Cerro Grande) como Terra Mbyá-Guarani;
40) Identificação e regularização de Terra Mbyá em Santa Rosa (Santa Rosa);
41) Ampliação e regularização da Terra Mbyá de Guarita (Tenente Portela);
42) Ampliação e Regularização da Terra Indígena Guarani de Votouro (…);
43) Ampliação e Regularização da Terra Guarani de Mato Preto (Nonoai);
44) Ampliação e Regularização da Terra Guarani de Cacique Doble;
45) Reconhecimento de ocupação e de acesso livre às áreas protegidas em cidades que se criaram sobre os antigos Sete Povos Jesuítico-Guarani: São Borja, São Luiz Gonzaga, São Nicolau, São Miguel, Santo Ângelo;
46) Identificação e regularização de Terras Mbyá em Pirapó e Garruchos (São Nicolau, na costa do rio Uruguai);
47) Reconhecimento de ocupação e de acesso livre às áreas protegidas em cidades e vilas que se criaram sobre antigas aldeias Guarani reconhecidas pela história e pela arqueologia: Porto Alegre (aldeias na praça da Alfândega, no Iguatemi, nas ilhas do delta do Jacuí); Gravataí (Aldeia dos Anjos); Santo Antônio da Patrulha (Guarda Velha); Torres (Presídio de São Domingos); São Nicolau do Rio Pardo; São Nicolau da Cachoeira (Cachoeira do Sul); etc.
48) Constituição de Grupos de Trabalho para negociação pelo livre acesso dos Mbyá em propriedades particulares existentes na periferia da algumas aldeias, como acontece na Lomba do Pinheiro, no Petim, na Coxilha da Cruz, na Água Grande, na Pacheca, no Inhacapetum, no Caaró e em outras comunidades Mbyá;
Considerando o respeito aos nossos direitos originários, garantidos pela Constituição Federal Brasileira de 1988, exigimos o imediato encaminhamento de todas nossas reivindicações e o respeito por nossa auto-determinação enquanto povo diferenciado dentro do território nacional.
Assinam:
Mburuvixá Tenondé José Cirilo Pires Morinico
Cacique Geral Rio Grande do Sul
Cacique Tekoá Anhetenguá (Porto Alegre)