Manaus, 17 de janeiro de 2006.
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), em resposta às declarações do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Pereira Gomes, veiculadas na imprensa no dia 12 de janeiro de 2006, questionando o direito originário dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, vem a público manifestar:
Incomodado com a divulgação de informações sobre o elevado número de mortes de índios durante o ano de 2005, decorrentes na sua maior parte da lentidão nos processos de regularização das terras indígenas, conseqüentemente da pressão e atos de violência cometidos contra a população indígena por os mais diversos tipos de invasores, o Presidente da Funai, Mércio Gomes, declarou à Agência de notícias Reuters, no dia 12 de janeiro de 2006, que os povos indígenas do Brasil têm terra demais: “Até agora, não há limites para suas reivindicações fundiárias, mas estamos chegando a um ponto em que o Supremo Tribunal Federal terá de definir um limite”.
A Coiab reafirma publicamente que as mortes de índios no Brasil, seja pela violência praticada pelos invasores das Terras Indígenas ou pela incapacidade de definir e implementar políticas públicas eficientes e de qualidade nas áreas da saúde, da educação e da sustentabilidade para os povos indígenas são, sim, de responsabilidade do atual Governo, que esses anos de mandato esqueceu totalmente dos seus compromissos assumidos durante mais de 20 anos junto às lideranças e instâncias representativas dos povos indígenas. Só durante o ano de 2005 que esse governo abriu-se para dialogar com o movimento indígena, após de muita pressão desses povos e suas organizações, que sempre foram ignorados e desrespeitados, de modo particular pelo presidente do órgão indigenista.
Com relação à demarcação das terras indígenas e às reivindicações dos povos indígenas, envolvendo não só a regularização, mas também Programas de vigilância, proteção e sustentabilidade das terras indígenas, é lamentável que o antropólogo Mércio Gomes tente descaracterizar a importância da terra e as implicâncias da falta dessa terra para os povos indígenas, contradizendo afirmações que ele próprio explicitou em trabalho desenvolvido com o povo Tenetehara (Guajajara), no Maranhão: “um povo indígena sem terras suficientes para exercer seu modo de ser se vê forçado a mudar, a deixar de lado muitas características sociais e culturais que reforçam sua etnicidade, e se adaptar a um novo modo, mais parecido com o modo camponês de ser. No limite, a etnia pode se desagregar em grupos familiares ou indivíduos desconectados que passam a buscar sua sobrevivência por conta própria…”.
Ao declarar que “É terra demais. Até agora não há limites para suas reivindicações fundiárias”, o presidente da Funai parece na verdade querer que este seja o destino dos povos indígenas. E essa intenção etnocida ele propõe que seja institucionalizada através de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), limitando o direito territorial dos povos indígenas.
Na prática, o presidente da Funai já agiu nesse sentido, ao ser um dos principais responsáveis pela paralisação dos processos de regularização das terras indígenas desde fins de 2003. Não adianta agora tentar desmentir as suas deslavadas afirmações, porque estas já foram há muito tempo legitimadas ao concordar com medidas inconstitucionais como a redução da Terra Indígena Baú, do povo Kaiapó, no Pará.
Querer que o STF limite os direitos territoriais dos povos indígenas, é induzir ao cometimento de um ato ditatorial de inversão do direito constitucional dos povos indígenas, em favor de interesses econômicos e políticos que como o presidente da Funai propõem e defendem a redução das terras indígenas, no Congresso Nacional, desprezando a grande diversidade étnica e cultural composta por mais de 230 povos indígenas diferentes, realidade essa que dispensa comparações estúpidas como a de que a área ocupada pelos índios no Brasil é maior que a de países da Europa.
Vangloriar o Governo Lula por ter homologado a Terra Indígena Raposa Serra do Sol e dizer que o Brasil tem uma das políticas indigenistas mais avançadas é querer tapar o sol com a peneira, pois o atual Governo cumpriu nada mais do que seu papel constitucional de fechar administrativamente o processo de regularização desta terra, que por sinal só aconteceu depois de muita pressão e longos desgastes e sofrimentos para as organizações e povos indígenas da região, provocados pela morosidade dos próprios órgãos e autoridades de Governo. O volume reduzido de Terras Indígenas regularizadas e a situação de calamidade pública em que anda a saúde indígena em todo o país, por citar apenas dois aspectos do leque de direitos dos índios, não condizem com a retórica de uma política indigenista louvável.
Bem que a Coiab tinha razão quando discordou da indicação pelo Governo Lula do antropólogo Mércio Gomes para a Presidência da Funai, pois agora ele próprio assumiu-se como inimigo declarado dos povos indígenas ao questionar o direito territorial desses povos, fazendo eco a interesses de fazendeiros, madeireiros e outros invasores interessados nas riquezas das terras indígenas e que anseiam a extinção física e cultural dos indígenas.
Cabe agora ao Governo do Presidente Luis Inácio Lula da Silva atestar perante a opinião pública nacional e internacional se o ponto de vista defendido pelo presidente da Funai é a visão que norteia a sua política indigenista. Se não for, que dê uma demonstração de quem é que manda neste país, exonerando imediatamente o antropólogo Mércio Pereira Gomes, antes que faça mais estragos não só a seu governo mas sobretudo ao direito sagrado dos povos indígenas de usufruir das terras que tradicionalmente ocupam. Mas não basta essa substituição. O Governo tem que demonstrar que de fato tem compromisso com os povos indígenas e que a tão pregoada Nova Política Indigenista de início de mandato venha a se concretizar com ações concretas, com políticas públicas coerentes com os anseios, demandas e aspirações dos povos indígenas.
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)
Fonte: https://cimi.org.br/2006/01/24306/