Coroa Vermelha, Bahia, 21 de abril de 2000.
“O Brasil que a gente quer são Outros 500”
Chegamos na aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, município de Santa Cruz Cabrália, Bahia, no dia 17 de abril. Cumprimos o compromisso de refazer os caminhos da grande invasão sobre nossos territórios, que perdura já 500 anos.
Somos mais de 3.000 representantes, de 140 povos indígenas de todo o país. Percorremos terras e caminhos dos rios, das montanhas, dos vales e planícies antes habitados por nossos antepassados. Olhamos com emoção as regiões onde os povos indígenas dominavam e construíam o futuro, ao longo de 40 mil anos. Olhamos com emoção as regiões onde os povos indígenas tombaram defendendo a terra cortada por bandeirantes, por aventureiros, por garimpeiros e, mais tarde, por estradas, por fazendas, por empresários com sede de terra, de lucro e de poder.
Refizemos este caminho de luta e de dor, para retomar a história em nossas próprias mãos e apontar, novamente, um futuro digno para todos os povos indígenas.
Aqui, nesta Conferência, analisamos a sociedade brasileira nestes 500 anos de história de sua construção sobre os nossos territórios. Confirmamos, mais do que nunca, que esta sociedade, fundada na invasão e no extermínio dos povos que aqui viviam, foi construída na escravidão e na exploração dos negros e dos setores populares. É uma história infame, é uma história indigna.
Dignidade tiveram, sempre, os perseguidos e os explorados, ao longo destes cinco séculos. Revoltas, insurreições, movimentos políticos e sociais marcaram também nossa história, estabelecendo uma linha contínua de resistência.
Por isso, voltamos a recuperar essa marca do passado para projetá-la em direção ao futuro, nos unindo aos movimentos negro e popular e construindo uma aliança maior: a Resistência Indígena, Negra e Popular.
Nossas principais exigências e propostas:
São as seguintes as principais exigências e propostas dos povos indígenas para o Estado brasileiro, destacadas por esta Conferência:
- cumprimento dos direitos dos povos indígenas garantidos na Constituição Federal:
- Até o final do ano 2000 exigimos a demarcação e regularização de todas as terras indígenas;
- Revogação do Decreto 1.775/96;
- Garantia e proteção das terras indígenas;
- Devolução dos territórios reivindicados pelos diversos povos indígenas do Brasil inteiro;
- Ampliação dos limites das áreas insuficientes para a vida e o crescimento das famílias indígenas;
- Desintrusão (retirada dos invasores) de todas as terras demarcadas, indenização e recuperação das áreas e dos rios degradados, como por exemplo o Rio São Francisco;
- Reconhecimento dos povos ressurgidos e seus territórios;
- Proteção contra a invasão dos territórios dos povos isolados;
- Desconstituição dos municípios instalados ilegalmente em área indígena;
- Respeito ao direito de usufruto exclusivo dos recursos naturais contidos nas áreas indígenas, com atenção especial à biopirataria;
- Paralisação da construção de hidrelétricas, hidrovias, ferrovias, rodovias, gasodutos em andamento e indenização pelos danos causados pelos projetos já realizados;
- Apoio a auto-sustentação, com recursos financeiros destinados a projetos agrícolas, entre outros, para as comunidades indígenas.
- a imediata aprovação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT);
- aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas que tramita no Congresso Nacional conforme aprovado pelos povos e organizações indígenas (PL 2.057/91);
- o fim de todas as formas de discriminação, expulsão, massacres, ameaças às lideranças, violências e impunidade. Apuração imediata de todos os crimes cometidos contra os povos indígenas nos últimos 20 anos e punição dos responsáveis. Exigimos o respeito às nossas culturas, tradições, línguas, religiões dos diferentes povos indígenas do Brasil;
- a punição dos responsáveis pela esterilização criminosa das mulheres indígenas a critério da comunidade;
- que a verdadeira história deste país seja reconhecida e ensinada nas escolas, levando em conta os milhares de anos de existência das populações indígenas nesta terra;
- reestruturação do órgão indigenista, seu fortalecimento e sua vinculação à Presidência da República, através de uma Secretaria de Assuntos Indígenas, consultando-se as organizações de base quanto a escolha dos secretários;
- que o presidente da Funai seja eleito pelos povos indígenas com indicação das diferentes regiões do Brasil;
- a educação tem que estar a serviço das lutas indígenas e do fortalecimento das nossas culturas;
- que seja garantido o acesso dos estudantes indígenas nas universidades federais sem o vestibular;
- reforma, ampliação e construção das escolas indígenas e oferta de ensino em todos os níveis, garantido-se o magistério indígena e educação de segundo grau profissionalizante;
- fiscalização da aplicação das verbas destinadas às escolas indígenas, criando um Conselho Indígena;
- a educação escolar indígena e o atendimento à saúde deve ser de responsabilidade federal. Rejeitamos as tentativas de estadualização e municipalização;
- a Lei Arouca, que institui um subsistema de atenção à saúde dos povos indígena, seja aplicada;
- fortalecer e ampliar a participação ativa das comunidades e lideranças nas instâncias decisórias das políticas públicas para os povos indígenas, em especial, que os Distritos Sanitários Especiais Indígenas tenham autonomia nas deliberações;
- o atendimento de saúde deve considerar e respeitar a cultura do povo. A medicina tradicional deve ser valorizada e fortalecida;
- formação específica e de qualidade para professores, agentes de saúde e demais profissionais indígenas que atuam junto às comunidades;
- que seja elaborada uma política específica para cada grande região do país, com a participação ampla dos povos indígenas e de todos os segmentos da sociedade, a partir dos conhecimentos e projetos de vida existentes;
- fortalecer o impedimento da entrada (e retirada) das polícias Militar e Civil de dentro das áreas indígenas sem autorização das lideranças;
- exigimos a extinção dos processos judiciais contrários a demarcação das terras tradicionais ocupadas pelos povos indígenas.
Nós, povos indígenas do Brasil, percorremos já um longo caminho de reconstrução dos nossos territórios e das nossas comunidades. Com essa história firmemente agarrada por nossas mãos coletivas, temos a certeza de que rompemos com o triste passado e nos lançamos com confiança em direção ao futuro. Apesar do peso da velha história, inscrita nas classes dominantes deste país, na sua cultura, nas suas práticas políticas e econômicas e nas suas instituições de Estado, já lançamos o nosso grito de guerra e fundamos o início de uma nova história, a grande história dos “Outros 500”.
A nossa luta indígena é uma homenagem aos inúmeros heróis que tombaram guerreando ao longo de cinco séculos. A nossa luta é para nossos filhos e netos, povos livres numa terra livre.
DOCUMENTO FINAL DA CONFERÊNCIA DOS POVOS E ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS DO BRASIL
Fonte: http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/indios/marcha.htm