Da Juventude Kaingang para o Brasil

26 de outubro de 2015.

“(…) porque a terra, para cada um de nós, é muito mais do que um pequeno pedaço de terra negociável. Nós temos uma relação espiritual com a terra de nossos ancestrais. Nós não negociamos direitos territoriais porque a terra, para nós, representa a nossa vida. A terra é mãe e mãe não se vende, não se negocia. Mãe se cuida, mãe se defende, mãe se protege.” (Sônia Guajajara)

Junto dessa sábia e virtuosa manifestação do pensamento de Sônia Guajajara, proferida durante a sessão de debate da Proposta de Emenda Constitucional n° 215/00 realizada em 13/08/2013, na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados. Nós juventude indígena e Povo Kaingang do atual estado do Rio Grande do Sul, que se reconhece como continuidade histórica da resistência de Povos indígenas originários deste país, vinculados a um passado milenar, latente em nossas memórias, nas narrativas, nos cantos, nas danças, nas nossas cores e nos símbolos que compõem nossas cosmologias e nossa existência, viemos afirmar nossa postura ética nesse cenário marcado pela ganância e assimetria de poder.

Viemos portanto a público expressar nosso repúdio e consternação face as recentes declarações do deputado Federal Valdir Colatto (PMDB/SC) na plenária de reunião da pauta extraordinária de discussão e votação do parecer da PEC 215 do dia 20/10/2015, no qual esse senhor afirma deliberadamente que os indígenas do sul comungam e são favoráveis a esta proposta normativa inconstitucional e genocida.

Assim como repudiamos declarações de outros parlamentares da bancada ruralista, que nessa corrida insana e doentia para aprovar a PEC 215 em detrimento dos interesses de latifundiários e o oligopólio vinculado ao agronegócio, abertamente dizem que os Povos indígenas do Sul e sua juventude que gradativamente acessa os espaços de universidades no sul do Brasil, estão de acordo com essa normativa.

Senhores deputados da bancada ruralista, é apelativa, pretensiosa e ofensiva de sua parte declarações deste teor especialmente sobre o Povo indígena Kaingang com a 3° maior população de originários deste que atualmente chamamos de Brasil, baseada ao que sabemos em uma pseudo reunião com algumas supostas lideranças, essas que não representam nem de longe nossas pretensões como povo indígena, em reunião para negociarem, sobre modelos produtivos, sim negociavam, afinal tudo para vocês é capital, recurso e lucro não é.

Não falavam sobre a resistência indígena no sul do Brasil com essas lideranças, não falavam das mazelas e estigmas que ficaram para nós da herança maldita do violento processo de colonização, que materializam a divida histórica do Brasil com os Povos indígenas, não falavam de que o movimento das retomadas é o símbolo mais genuíno de nossa história, de nossas narrativas e memórias que transcendem os milhões de reais que os senhores enchem a boca nas suas declarações para afirmar suas intenções em justificar modelos produtivos sem o mínimo de equidade ambiental e social. E sim meus caros, sem a real representatividade dos mais de 33 mil Kaingang do Planalto Meridional.

Suas declarações são completamente irrisórias infundadas e sem nenhum comprometimento real à questão indígena, se não os seus próprios interesses em expandir suas fronteiras e afirmar essa atroz normativa que atenta contra os direitos indígenas constitucionalmente afirmados. Sem a devida análise sociocultural, socioambiental, histórica e antropológica dessa questão, querem mais é ter acesso a todos os recursos dos poucos redutos de territórios conquistados com muita luta e resistência dos Povos indígenas, assim como de nos privar do direito constitucional de reaver os territórios que nos foi tirado através do esbulho, lugares que remontam e conformaram a nossa humanidade que transcende Brasil, America Latina ou qualquer que seja a denominação onde existíamos a milhares de anos antes do presente absolutos, até chegada da dita “civilização”.

Tolos vocês, pois como poderíamos em sã consciência estar de acordo com uma proposta que atenta contra clausulas pétreas da Constituição Federal de 1988, as poucas que conquistamos. Como poderíamos trair os princípios e valores que orientam a lógica ameríndia do Bem Viver. Como poderíamos nós essa geração que tem legado de continuar a luta pela dignidade que outrora nos foi tirada.

Como poderíamos nós comungar com tal atrocidade ao direito fundamental da constituinte sobre nossos territórios e esquecer do quão iluminado e aguerrido foi o processo constituinte, do levante social do Brasil como um todo. Tendo na constituinte o anseio e desfecho da postura ética brasileira contra a tirania e o autoritarismo da ditadura.

Como poderíamos nós esquecer da atuação maciça e orgânica dos Povos indígenas de todo o território brasileiro unidos em um momento épico nesse processo que resultou nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal e que reconheceu a diversidade cultural do Brasil. Para nós hoje os artigos conquistados na constituinte é um patrimônio de nossa história recente e símbolo material da nossa existência no contemporâneo, caracterizando como direito adquirido e sagrando-se assim como clausula pétrea da Constituição Federal de 1988.

Por fim meus caros nós Povos e juventude indígena do atual estado do Rio Grande do Sul, somos declaradamente contrários a PEC 215, não haveria cabimento e postura ética concernente aos nossos princípio e valores morais abdicar de direitos fundamentais conquistados e adquiridos como clausulas pétreas de nossa Constituição Federal.

E não suas declarações e essas supostas lideranças não nos representam, não vai ser a partir de uma análise tão superficial e direcionada aos interesses da bancada ruralista que vamos esquecer do núcleo de identidade da Constituição de 88, essa que tem um compromisso visceral com os direitos fundamentais como um todo, e não só com as liberdades individuais clássicas, a Carta Magna não se trata de uma Constituição liberal-burguesa, preocupada com a contenção do arbítrio do Estado nas deliberações.

Mas sim de uma Lei Fundamental que toma como tarefa essencial promover e zelar pela dignidade humana em todas as suas dimensões, sobre tudo das minorias. Nós Povos indígenas como uma dessas minorias participamos com assiduidade da construção dos fundamentos originários da constituinte e não aceitamos que essa identidade da Constituição Federal de 1988 seja desconstruída em prol dos interesses da bancada ruralista.

E reiteramos que somos veemente contrários a intenção da PEC 215 de que a deliberação final sobre a demarcação de terras indígenas fique sob a responsabilidade do parlamento. Ora, se a PEC 215 fosse aprovada e não vai ser, a fruição do direito fundamental à terra indígena seria plenamente condicionada à vontade da maioria política do Parlamento. Ao tornar a demarcação das terras indígenas dependente de aprovação parlamentar, e subordinar a inalienabilidade, indisponibilidade e imprescritibilidade dos direitos que incidem sobre estas terras à decisão política do Congresso, o constituinte derivado afetaria o direito fundamental previsto no art. 231, comprometendo o núcleo essencial do direito, anterior ao Estado brasileiro.

Fato é que o Parlamento Federal, com todo o respeito que a instituição merece, é uma instância profundamente incutida pelo poder econômico, onde se faz presente, com enorme força e poder toda a sorte de barganha. Assim como uma ampla bancada ruralista, adversária histórica, ofensiva, preconceituosa, ferrenha e implacável dos direitos dos Povos indígenas e do meio ambiente.

Neste sentido concluímos que atribuir ao Congresso Nacional a última palavra sobre a demarcação de terras indígenas significaria, do ponto de vista material e prático, quase o mesmo que revogar integralmente o direito fundamental dos Povos indígenas ao território tradicionalmente ocupado. O Supremo Tribunal Federal, no seu papel maior de guardião da Constituição e dos direitos humanos das minorias, não pode permitir que tamanha tragédia se consume. Assim como deve zelar pela sociodiversidade dos Povos indígenas brasileiros, diversidade essa que repousa na demarcação e proteção das terras indígenas e deve também lembrar de acordos internacionais firmados pelo Brasil que o colocam no compromisso de assegurar o Bem viver dos Povos indígenas.

O POVO KAINGANG DO RIO GRANDE DIZ NÃO À PEC 215

A JUVENTUDE INDÍGENA DO RIO GRANDE DO SUL DIZ NÃO À PEC 215

Fonte: https://acervo.racismoambiental.net.br/2015/10/26/nota-de-repudio-a-pec-215-juventude-indigena-e-povo-kaingang-do-atual-estado-do-rs/

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