Kambiy

Dos Guarani Kaiowa para o Brasil

Kambiy 06 e 14 de setembro de 2015

Mensagem da Comunidade Kaiowa de Guyra Kambiy

Feijão velho só cozinha na pressão

Nós gostaríamos de levantar nossa voz para aqueles que desejam saber bem porque nós fizemos esta nova retomada.

Nós caminhamos apenas uns 1.500 metros ao norte do nosso antigo acampamento, para levantar uns barracos para nós e uma casinha para a Cruz, para plantar comida para nós.

Caminhamos em direção à terra produtiva, porque aqui [em nosso antigo acampamento] já vivemos amontoados como larvas de uma coisa podre.

Nos fizemos de coragem e fomos [fazer a retomada], porque senão esperamos em vão pelo poder executivo, judicial e político.

Saímos pois sabemos que eles não virão nos dizer “tenham aqui sua terra, peguem aqui o seu direito”.

Nós sabemos que entre os poderosos do executivo, legislativo, judicial e político estão os que têm preconceito, os que levantam falsos sobre nós e dão testemunhos em contra de nosso povo, por exemplo, que não trabalhamos.

E se nós não trabalhamos (como os não indígenas acham que devíamos) é porque não temos condição. Se cortar a linha de crédito dos grandes proprietários, eles não vão produzir.

Para esses nós não valemos nada. Somos motivo de gozação. Nosso direito está em vão no papel.

Se vamos ao banco pedir financiamento, não há crédito para nós. Nosso direito à terra é uma esperança vã.

Nós sabemos que para vereador, deputado, senador, prefeito, governador e presidente servimos só para votar. Mas não temos opção, temos que votar. Cheios de bicho de pé, de verme, de doença … temos que votar. Se não, quando vamos oferecer nosso serviço para trabalhar, como gari, temos que pagar primeiro uma multa.

Nossa vida não vale nada para os poderosos. Eles nos usam como querem. Só nossa morte vale alguma coisa. Só a morte lhes move. A lei não move nada. Eles usam a lei contra nós; eles viram a lei a seu favor. Os políticos fazem acordos com os poderosos, com os donos da terra. Eles mesmos são também proprietários de terra!

Dentro da lei está tudo: direito humano, meio ambiente, propriedade, trânsito, capacete, animais, demarcação! Há lei para cachorro, bosque, água e lixo. Os políticos apreciam e apoiam a lei da biodiversidade, a lei do uso do capacete, a lei sobre a PETROBRAS! Eles respeitam. Mas quanto se trata de demarcação, deixa para mais tarde, para mais tarde, para mais tarde.

E como a lei não traz vida e não é viva para nós, nós ficamos sem lei de novo. O artigo 231 da Carta Magna não quer dizer nada para nós, se não nos devolvem parte da nossa terra, para vivermos nossa cultura. Nós também percebemos que também há travas para a ação do Ministério Público Federal, da FUNAI, da Polícia Federal, da Força Nacional… E nós nos perguntamos: Será que estes órgãos de justiça não podem contra os poderosos?

Enquanto isso, nós vivemos como no Oriente Médio! Vivemos apertados nestas três hectares.

Já somos mais de cem pessoas nesta franja de terra. Meia hectare é puro varjão. Nós vivemos aqui sem justiça.

As pessoas vêm nos olhar como se olhassem porco num chiqueiro. Só um momento. Nós recebemos um pouco para comer e somos novamente deixados. Somos tidos como animais. Não somos gente, não temos direito humano para os poderosos.

Mesmo os não indígenas bem intencionados vêm apressados nos ver. Logo vão embora, em seus carros. Não esperam que nós falemos.

E nós ficamos sem justiça, com pés e mãos amarrados pelo próprio governo e pelos poderosos do poder legislativo e judiciário.

Precisamos de ajuda da sociedade para desamarrar.

E quando policiais e outras autoridades vêm até aqui, só eles querem falar. Nos têm como ignorantes. Eles não querem saber nada de nós. Não perguntam por exemplo porque fizemos

nova retomada, porque saímos de nosso antigo acampamento e fomos tentar providenciar para nós um lugar onde futuramente podemos viver nossa cultura. Nós ao contrário vivemos perguntando aos não indígenas.

O processo de nossa terra já é bem antigo. E como feijão velho só cozinha na pressão. O processo está engavetado e se nós não avançarmos, se nós mesmos não o fizermos caminhar, ele não vai chegar a termo nunca!

Nós vivemos sobre 2,5 hectares e temos 0,5 hectare de varjão. Mas nós precisamos não só de varjão, não só de mata, mas também terra para trabalhar, terra produtiva para produzir comida para nós.

Já não temos mais lugar aqui. Continua chegando gente aqui, que já não tem lugar em outras aldeias. Nós Kaiowa somos muito e a terra já não se expande, já não se estica mais, como no princípio.

Porque entramos na terra do não indígena, na verdade na nossa terra? Porque aqui onde moramos não temos onde plantar, na aldeia velha tampouco há terra para plantar. Por isso fizemos nova retomada. Porque essa é uma ação da nossa cultura. Nós temos que caminhar, se necessário, para viver.

Nós entramos à procura de terra. Os não indígenas porém entraram à procura de nossas vidas. Eles queriam nos balear, nos matar. Eles ofereceram dinheiro no povoado vizinho para quem nos matar. Ele juntou os Che ra’ato [alusão a paraguaios] para nos matar. Nós não queremos matar ninguém, só queremos terra para plantar comida.

Porque retrocedemos? Porque não houve segurança e porque não queremos mortos. Nós só queremos terra. Durante três dias fomos alvos de armas de fogo; nós só tínhamos estilingue, bastão pintado e flecha. Mas eles estavam impregnados de reza. As avós, os avós, as crianças, os homens e as mulheres nos fortalecemos na reza e fizemos frente a eles.

Eles queimaram nossos barracos, nossas roupas brancas e nossos enfeites religiosos, queimaram também a Cruz que levamos.

Depois disso, nós recuamos. A Funai nos pediu para recuar. E nós recuamos. E nós nos sentimos bem porque não houve mortos. Mas nós também nos sentimos mal por termos recuado, porque nossa necessidade recuou conosco e nós não podemos viver assim muito tempo.

Se alguém tivesse morrido no conflito, será que o processo da nossa terra teria “caminhado”?

Será que teriam ampliado a área de nosso acampamento?

Nós pedimos a todas as pessoas que tem alguma consideração por nós para nos ajudar. Nós precisamos da nossa terra. Para isso, as autoridades têm o poder em suas mãos; mas entendemos que as pessoas e instituições podem ajudar, para que as autoridades tenham alguma consideração pela nossa história e pelo nosso presente e agilizem a demarcação.

Nós lamentamos a morte de todos os Kaiowa assassinados como Simeão por causa de sua luta pela terra e pedimos a todas as autoridades e à justiça que estas mortes não fiquem impunes. Se ficarem impunes fortalecerão aos malfeitores e a seus mandantes. Os Kaiowá, ao contrário, serão diminuídos, menosprezados.

Nós também desejamos cantar o nosso bom modo de viver. Queremos renovar nossos enfeites rituais [muitos foram queimados no confronto] para esperar ao som de nossos cantos e nossas rezas pela demarcação, em paz, para que nossos filhos e nossas filhas sejam felizes e tenham lindas flores!

E que a Bondade de Nosso Pai nos abençoe.

Comunidade Kaiowa – Acampamento Guyra

Fonte: http://www.indio-eh-nos.eco.br/2015/09/23/mensagem-da-comunidade-kaiowa-de-guyra-kambiy-no-mato-grosso-do-sul-durante-tres-dias-fomos-alvos-de-armas-de-fogo/ 

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