À esquerda do Rio Doce, 11 de setembro de 2020.

De Ailton Krenak para quem quer cantar e dançar para o céu

À esquerda do Rio Doce, 11 de setembro de 2020.

Amigos,

Percebi, antes de começar a escrever essas palavras, que se aproxima a primavera. Estamos chegando ao momento do esteio do céu. Decidi, então, escrever esta carta para falar com vocês sobre o Bem Viver, para quem acredita que cantando é possível suspender o céu, para quem acredita que o modo como vivemos e o mundo onde vivemos é recriado a toda hora. Para além da nossa capacidade de descrever a vida, quero aqui falar da vida como um evento que acontece de dentro de tudo, o tempo todo. 

Escrevo, então, para nosso Taru, nosso céu, e para quem acredita que pode suspendê-lo nesse tempo primaveril de proximidade com a terra. 

Nossos ancestrais cantavam para suspender o céu. Com esse canto, a cura também chega. Esse é um dos poderes que nossos ancestrais nos passaram: uma prática de comunhão da terra com o céu, por isso a terra é a nossa mãe. 

A ideia da terra como nossa mãe é muito repetida entre nós, indígenas. A poética expressa nessa imagem da mãe-terra pode ser até ingênua para alguns, mas ser filho da terra é aprender que estamos em relação com todos os outros seres sagrados que constituem o mundo. Se esse giro de forças pudesse ser pensado não como ingenuidade nossa, mas como nosso modo de agir no coletivo, provavelmente não seríamos nós, os indígenas, os povos sem o lugar de viver e o lugar de morrer na grande história do mundo. 

Nosso canto também nos livra do abismo que os brancos criaram entre os mortos e os vivos. Nossos ancestrais estão todos aqui, estão todos em meu corpo e, quando eu morrer, eles estarão aqui também. Do mesmo modo, eu também estarei. A comunhão céu e terra é isso, o nosso Taru Andé é isso! Por isso, a importância de não ocupar nossos pensamentos com narrativas estreitas, com uma narrativa só. Essa ideia dos nossos antigos de suspender o céu cantando, dançando, para aliviar a terra do excesso de pressão que oprime os humanos se relaciona com uma outra constelação de saberes, que nos diz que o céu já caiu sobre a terra em outras épocas. 

Quando as humanidades experimentam catástrofes, fazem do canto e da dança a sua aprendizagem. Esses cantos de suspender o céu criam uma brisa, um ar que faz com que os humanos reestabeleçam a sua própria cura. Essa ideia ensina que o céu já caiu em outras épocas e os humanos desenvolveram formas de conversar com o céu, cantar para ele, cantar para o rio, para a montanha. Essas humanidades extraíram dessas experiências a poesia da vida, o canto para afastar a dor, o xamanismo, ou seja, poderes que nossos ancestrais passaram de geração em geração para nos constituirmos como filhos do organismo terra. 

Essa lógica que o Ocidente criou de demarcar território, de enquadrar as formas de vida dos povos originários causou danos irreversíveis às nossas formas de estar no mundo, danos que se repetem por falta de um bom encontro que possa reconciliar essas perspectivas de mundo em disputa. Pensar o mundo pela lógica das disputas virou a razão da humanidade, como se essa ideia tivesse uma natureza própria. Em outras palavras, o verbo disputar virou verbo vida, passou a nomear o princípio das coisas do mundo. Mas como estar além da violência que confirma todos os dias o equívoco da narrativa que diz que o mundo foi criado para nos servir e que nós estamos aqui para incidir sobre ele? Como estar além? Como deixar de acreditar no mundo como uma plataforma extrativista? Como escapar desse vírus gigante homo sapiens, essa bactéria que come o planeta?

Se continuarmos entendendo o mundo assim, viveremos sempre produzindo incidentes, terríveis incidentes engajados em nome e em defesa do progresso, da evolução e só teremos a banalização e o desprezo pela vida como horizonte de expectativa. Digo isso porque o que escolhemos comer, vestir, fazer, plantar, criar tem relação com tudo isso, mas, grande e infinita disputa. Quando defendo que precisamos voltar a sonhar é porque precisamos acreditar na criação de uma inteligência sutil, movente, para permitir que a vida, em sua diferença, coexista. 

Por isso, quando o céu criar a pressão sobre a terra, digo a você que dance, que suspenda o céu! Os filhos da terra precisam cantar e dançar para que o céu possa dar uma atmosfera vital, necessária para o retorno das flores, dos pássaros, das borboletas, das matas, enfim, para a celebração da vida, para o Bem Viver. 

Escrever esta carta, neste momento crítico das humanidades ou das pluralidades, como gosto mais de dizer, me fez desejar dançar para o céu, me fez querer a vida nessa plenitude e me fez, também, convidar você que está lendo estas palavras agora para cantar junto, para chamar a primavera, para vivermos juntos e bem. 

Com um abraço afetuoso, 

AILTON KRENAK

Fonte: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/livro/cartas-para-o-bem-viver/

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