Da Assembleia dos Tuxauas de Roraima para Brasil

23 de junho de 2004.

“Direitos Humanos e o Futuro dos Povos Indígenas”

Carta Aberta as autoridades

Nós lideranças Indígenas do Estado de Roraima dos Povos Ingaricó, Karafaiuana, Macuxi, Mauaiana, Patamona, Sapará, Taurepang, Xirixana, Wapixana, Wai Wai, Waimiri-Atroari, Yanomami, Ye´kuana, presentes na XXXI Assembléia Geral dos Tuxauas, realizada na Maloca do Pium, situada na Terra Indígena Pium, durante os dias 05 à 08 de fevereiro de 2002, com a participação de 616 lideranças, para discutir nossas preocupações e reivindicações, com a finalidade de propor melhores condições de vida para os Povos Indígenas, vimos afirmar:

Nossos direitos fundamentais

  • É livre quem pode pensar, expressar, viver conforme seus princípios, dizer sim ou não, para viver com dignidade. Já fomos muito explorados, humilhados e massacrados.
  • Resistimos a todas formas de invasão, colonização forçada, degradação cultural e extinção decretada. Nossa contribuição no Brasil é visível, principalmente na Amazônia, em território tradicional, onde podemos constatar as maiores concentrações de florestas preservadas, a abundância de água potável, e o enriquecimento da biodiversidade.
  • Nossos avós ajudaram a ampliar e defender nossas fronteiras, definindo o território brasileiro.

Nossos direitos indígenas

  • Com a Constituição Federal de 1988 muitos direitos nos foram reconhecidos, no entanto, não são respeitados. Vale lembrar que o prazo de cinco anos estabelecido para a regularização fundiária das terras indígenas não foi cumprido. Esta indefinição causa sofrimento, mortes, doença, invasão, discriminação, contaminação das águas, desmatamento, exploração dos recursos naturais e demais conflitos em decorrência de disputas sobre as terras indígenas.
  • Em Roraima a situação é mais grave, pois as autoridades competentes, principalmente a classe política, se omitem do dever de buscar soluções para os conflitos. O maior exemplo disso é a mobilização contra o procedimento demarcatório da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
  • Esta Assembléia discutiu as principias preocupações que afetam diretamente nossos direitos, dentre eles relacionamos a seguir.

NOSSAS PREOCUPAÇÕES

Projetos em terras indígenas

  • São usados vários artifícios para obstruir a demarcação das terras indígenas. As leis que deveriam assegurar nossos direitos são sistematicamente violadas, prova disso é a criação de municípios e imposições de projetos oriundos do Programa Calha Norte e a Interiorização da Rede Elétrica de Guri.

Municípios ilegais

  • Com a criação ilegal dos municípios de Uiramutã e Pacaraima, no ano de 1995 nas terras indígenas Raposa Serra do Sol e São Marcos, respectivamente, crescem a cada dia com a disseminação de bebida alcoólica, a prostituição, a propagação de drogas, abusos de autoridades, agressões físicas e tortura, loteamento das terras, e ampliação de invasões nas regiões Morro do Quiabo e Alto Miang.
  • No município de Pacaraima, ocorrem crimes ambientais como lixeira e matadouros clandestinos que despejam resíduos nas cabeceiras do rio Miang e igarapé Samã, e ainda tem as lavouras de arroz “Depósito” e “Canadá” que despejam agrotóxicos em igarapés e rios.

Vilas

  • A presença ilegal de vilas, antigas bases de apoio ao garimpo, agridem a vida física, sócio-cultural dos povos Indígenas, levando doenças, bebida alcoólica, prostituição, poluindo as águas e o ambiente. Nestas vilas implantam-se destacamentos da Polícia Militar, onde ocorrem perseguição às lideranças, abusos de autoridade, prisões ilegais, espancamentos, torturas. A PM dá cobertura à permanência de não-índios, que destróem moradias e retiros. Entendemos que a Polícia Federal é o poder judiciário competente para atuação no interior em Terra Indígena e que esta atenda devidamente as denúncias dos indígenas e suas organizações.

Presença militar em terras indígenas

  • Com a reativação do Programa Calha Norte começou a ser construído um quartel na maloca Uiramutã, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol e está previsto outro na região de Ericó na Terra Indígena Yanomami. Os quartéis são construídos sem qualquer consulta e contra a vontade manifesta das comunidades indígenas. A intransigência na implantação forçada de unidades militares em terras indígenas coloca a Soberania Nacional acima da dignidade e dos direitos dos povos indígenas.
  • Ao redor das bases militares crescem aglomerações urbanas e invasões, como constatado em Pacaraima após a implantação do 3º PEF na terra indígena São Marcos.
  • As manobras e treinamentos militares, causam constrangimento e provocam um terrorismo psicológico, agredindo a organização sócio-cultural, crenças, línguas, costumes e tradições indígenas. É triste saber que a União Federal que tem o dever de zelar pela proteção dos Povos Indígenas, age através das Forças Armadas, contra o texto Constitucional.
  • As mulheres indígenas são vistas pelos militares como objetos sexuais, como a referência do Diretor do Departamento de Pessoal do Exército, general Alcedir Pereira Lopes, publicada na Revista Brasil Rotário, edição de setembro de 2001, quando declarou que: “Quando falam que em Surucucus os soldados estão tendo relacionamento sexual com as índias, isso não quer dizer nada, porque todo mundo pode ter relação sexual com qualquer pessoa. E não tem outro tipo de mulher lá. Isso acontece realmente…” Enquanto o comando do Exército em Roraima nega, o alto comando da Instituição confessa o crime.
  • Está havendo interferência na educação e saúde indígena, pelo desrespeito e pela exigência da observação de normas militares, afetando a organização sócio-cultural das comunidade indígenas;

Unidades de Conservação

  • As Unidades de Conservação Parque Nacional do Monte Roraima e o Parque Nacional Serra da Mocidade, com sobreposição quanto às terras indígenas Raposa Serra do Sol e Yanomami, desrespeitam o nosso direito constitucional à posse permanente e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais.

Invasões

  • As invasões na Terra Indígena Yanomami: abertura de estrada, garimpeiros, madeireiros, fazendeiros, pescadores, militares, atualmente vem destruindo as florestas, causando desequilíbrio ambiental, aumentando a temperatura, acabando com a caça, os peixes e outros alimentos. Ocorre também, aumento de doenças sexualmente transmissíveis e malária. Na região de Catrimani, os Yanomami denunciam a presença de um trator e um avião trabalhando ilegalmente.
  • Continuam as invasões de fazendeiros, mesmo nas terras que já estão com os procedimentos demarcatórios concluídos, inclusive com indenização de suas benfeitorias já efetivadas. Essas invasões estão acontecendo em todas as regiões, provocando a depredação e limitando o uso dos recursos naturais.
  • Estão ocorrendo vendas das ocupações de invasores a outros invasores.

Arrozais

  • Denunciamos os rizicultores Paulo César Quartiero e Luís Agenor Faccio, Ivo Barentim, Valcir Centenário, Nelson, Agamenon e outros por invadir a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com lavouras de arroz, destruindo a natureza com desmatamento, uso intenso de agrotóxicos, que poluem as águas dos rios Surumu, Cotingo e Tacutu, matando os pássaros, os peixes e os animais silvestres. As lagoas naturais estão sendo afetadas, secando, e as pessoas das comunidades estão doentes e a terra ficando empobrecida.

Asfaltamento

  • O asfalto da BR-174 no trecho Boa Vista/Pacaraima, realizado sem consulta e consentimento das comunidades tem causado grandes prejuízos, mortes de pessoas, inclusive crianças, animais silvestres e criações. Não há sinalização e sonorização adequadas, os veículos transitam em alta velocidade. Não há nenhum estudo dos impactos ambientais e sócio cultural e os danos são inúmeros. Com esses precedentes, estamos preocupados com o asfaltamento da BR-401 que atravessa 37 km na T.I. Raposa Serra do Sol. Da mesma forma que a BR-174, as obras na BR-401 estão ocorrendo sem o necessário consentimento das comunidades, pois foi manifestado a intenção de discutir o empreendimento após a homologação da terra.

Energia

  • Acordo firmado entre as lideranças indígenas da terra São Marcos e a Eletronorte para a passagem do Linhão de Guri no interior da terra não foi respeitado, pois previa a retirada de todos os posseiros antes da interligação. O Relatório da Companhia Energética de Roraima CER, mostra que planejam a interiorização da rede elétrica passando por terras indígenas. As lideranças denunciam que a CER iniciou o processo de implantação sem que as comunidades indígenas se manifestassem, vindo fazê-los somente quando recomendadas por algumas autoridades e observadas que não houve os procedimentos legais para o cumprimento do Licenciamento Ambiental.

Políticos em Terras Indígenas

  • Estamos preocupados com as eleições deste ano para Presidente da República, Governadores, Senadores, Deputados Federais e Estaduais. As experiências das eleições passadas foram dramáticas para nossas comunidades. A invasão dos candidatos em nossas aldeias sem o menor respeito e de forma indiscriminada, promovendo festas e bebedeiras, compras de votos, distribuição de cestas básicas, tem provocado divisões internas, conflitos, com impactos extremamente negativos para nossas organizações sociais.

Vicinais

  • A Prefeitura de São João da Baliza construiu as vicinais que avançam sobre a T.I. Wai Wai, e tem provocado desmatamentos, invasão de colonos e garimpeiros.
  • O projeto de barragem do Jatapú trouxe operários que carregaram nossas mulheres, ainda meninas, para as cidades, destruindo assim algumas famílias.

Diante dos fatos reivindicamos:

  • Todos os projetos em que há interesse público que incidem em Terras Indígenas devem está em comum acordo com as comunidades e suas organizações, observando sobretudo a regularização fundiária de suas terras e que as mesmas estejam livres de invasores;
  • A paralisação de todas as construções e ampliações de obras e invasões nas Vilas Pacaraima, Uiramutã, Socó, Água Fria, Mutum e Pereira;
  • Revogação do ato que criou os Município de Pacaraima e Uiramutã;
  • A retirada das vilas do interior da Terra Indígena Raposa Serra do Sol;
  • A retirada de todos os pontos comerciais que vendem bebidas alcóolicas em Terras Indígenas;
  • Que a Polícia Federal atue nos casos de denúncias que envolvem indígenas, sem que haja declínio de competência para as Polícias Civil e Militar;
  • Que sejam promovidas reuniões entre o Ministério Público Federal e a Superintendência de Polícia Federal, juntamente com a FUNAI, organizações e lideranças indígenas, para discutir atuação da Polícia Federal em Terras Indígenas;
  • Abertura de debate para fixar critérios para a presença militar em terras indígenas;
  • A imediata paralisação das obras do 6º PEF na Aldeia Uiramutã, e não construção do quartel na região de Ericó;
  • A apuração devida das denúncias contra má conduta militar;
  • A intervenção do MPF na apuração e punição à discriminação e abusos sexuais que vem ocorrendo contra indígenas praticadas por militares;
  • A adoção das providências pelos Ministérios da Justiça e da Defesa para evitar a realização de manobras e treinamento militares em terras indígenas;
  • A não interferência das Força Armadas nas escolas e postos de saúde indígenas;
  • A adoção de providências pelo MPF para garantir que os jovens indígenas não sejam obrigados ao alistamento militar, sem que percam seus direitos civis;
  • A revogação dos Decretos de criação do Parque Nacional do Monte Roraima e a revisão de limites do Parque Nacional Serra da Mocidade;
  • Levantamento e retirada dos garimpeiros, fazendeiros, madeireiros, pescadores na terra Yanomami;
  • Providências para desintrusão imediata de todos os invasores, em especial dos que já receberam indenização. A maioria estão localizados na Região do Amajari ,Taiano e Serra da Lua;
  • Liberação de recursos para indenizar as benfeitorias de invasões da T.I. Raposa/Serra do Sol, não contemplada pelo PPTAL;
  • Que o Programa PPTAL aprove o projeto de fiscalização da Raposa Serra do Sol;
  • A sinalização identificatória das terras indígenas;
  • A celeridade processual das ações judiciais que discutem a retirada dos invasores em terras indígenas;
  • A conclusão do procedimento demarcatório das terras indígenas do estado de Roraima, em especial da T.I. Raposa/Serra do Sol que é o mais urgente para as lideranças presentes;
  • A agilização da regularização fundiária das terras indígenas Anaro, Tabalascada, Trombetas/Mapuera;
  • A ampliação dos limites das terras indígenas: Canauanin, Malacacheta, Jabuti, Ponta da Serra, Manoá-Pium, Serra da Moça, Truarú, todas já solicitadas junto a FUNAI;
  • Apuração dos crimes e reparação dos danos ambientais causados pelos rizicultores em terras indígenas, através da atuação do IBAMA, FUNAI e Ministério Público Federal;
  • A imediata retirada os rizicultores Paulo Cesar Quartiero, Ivo Barentim, Luiz Agenor Faccio, Agmom e Nelson da terra indígena Raposa Serra do Sol;
  • Aprovação do Programa de compensação Ambiental para a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em função do asfaltamento da BR-401para indenizar invasores, fiscalizar e sinalizar a estrada, evitando atropelamento e garantindo segurança em nossa terra, para que não aconteça como na T.I. São Marcos;
  • O Ministério da Justiça deverá recomendar providências ao Tribunal Regional Eleitoral em Roraima visando garantir os direitos indígenas em relação à atuação de políticos e cabos eleitorais em Terras Indígenas;
  • Nos posicionamos decididamente contra a abertura de novas estradas, estradas que estão trazendo invasores para o interior de nossas terras, e contra o desmatamento e qualquer iniciativa nesse sentido;
  • Intervenção do Ministério Público Federal no processo de interiorização de rede elétrica de Guri, para a defesa dos direitos e interesses dos Povos Indígenas.

Esperamos que as autoridades competentes sejam sensíveis as nossas reivindicações e adotem medidas urgentes para que nossos direitos sejam efetivados e cumpridos!

Assinam as lideranças presentes na 31ª Assembléia Geral dos Tuxauas

Fonte: https://cimi.org.br/2004/06/21894/

 

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