CARTA – V CONFERÊNCIA INDÍGENA DA AYAHUASCA
Nós, indígenas dos Povos: Apolima-Arara, Huni Kui, Kuntanawa, Noke Koi, Nukini, Puyanawa, Shanenawa, Shawādawa, Yawanawa, Apurinā (Pupykary), Manchineru, Madiha-Kulina (Aldeia Apuí da Terra Indígena Alto Rio Purus e Aldeia Ticuquara da Terra Indígena Kulina do Médio Juruá), Ashaninka da Apiwtxa do Brasil, Ashaninka da Selva Central do Peru, Yepá Mahsä-Tukano, Omágua Kambeba, Kamakä-Mongoyó, Potiguara, Pataxó, Iny, Yaminawa do Peru, Shipibo/Asociación de Onanyabo de Médicos Ancestrales Shipibo-Konibo (ASOMASHK), Quechua, Inga/Siona/Cofán/Kamentsá/ Koreguaje/Union de Médicos Indígenas Yageceros de la Amazonia Colombiana (UMIYAC), Nahua e Maya Bats’il K’op, Yaqui, Maya K’iche, Lakota, Klamath, Kenzi da Nubia, Balinês da linhagem de Sangging Prabangkara, com a presença de lideranças espirituais indígenas, todos reunidos na V Conferência Indígena da Ayahuasca, denominada nas línguas dos povos citados como Rami, Kamarăpi, Uni, Huni, Dispāni hew, Tsību, Yage, Gaapi, Kahpi, Hayakwaska, entre outras, realizada de 24 a 30 de janeiro de 2025, na Aldeia Sagrada, do Povo Yawanawa, Terra Indígena Rio Gregório, no município de Tarauacá, Acre, Brasil, sob a coordenação do Instituto Yorenka Tasorentsi (IYT), do Instituto Nixiwaka e da Cooperativa Yawanawa (COOPYAWA), após intensos debates, considerando e avançando as conclusões e decisões expressas nas cartas finais das quatro Conferências Indígenas da Ayahuasca já realizadas, tivemos as seguintes deliberações:
*Defendemos a integridade do patrimônio dos povos indígenas e seus direitos coletivos de propriedade intelectual. Afirmamos a nossa união contra ameaças e assédios e assumimos a responsabilidade de tornar acessíveis e disseminar informações para conscientizar sobre o tema;
*Solicitamos que governos, instituições governamentais e não governamentais, instituições de pesquisa, empresas e demais instâncias respeitem o direito à autodeterminação e à consulta livre, prévia e informada aos Povos Indígenas. Além disso, que tornem mandatórios os acordos internacionais que protegem os povos indígenas, seus territórios, culturas, patrimônio genético e a propriedade intelectual;
*Repudiamos todas as formas de comercialização da ayahuasca que formaram um mercado global fora dos limites éticos;
*Visamos garantir a liberdade de ir e vir com as nossas vozes, cores, indumentárias e nossas vestimentas tradicionais, bem como praticarmos nossos rituais tradicionais, com instrumentos e artes cerimoniais e nossas medicinas por onde formos;
*Demandamos juridicamente, administrativa e/ ou judicialmente que instâncias nacionais, internacionais e governos em todas as esferas protejam as propriedades intelectuais dos povos indígenas, de acordo com legislações vigentes e com acordos nacionais e internacionais;
*Demandamos a fiscalização, a proibição e responsabilização nos casos de tentativas de criação de patentes sem a devida consulta e anuência, assim como a produção, venda e uso indevido das medicinas tradicionais de conhecimento ancestral dos povos indígenas;
*Nos posicionamos contrários à criação de patentes e qualquer exploração do patrimônio genético culturalmente associado às medicinas tradicionais indígenas, assim como qualquer forma de apropriação do patrimônio dos povos indígenas;
*Estimulamos a criação de proposições legislativas (como, por exemplo, um projeto de Lei Estadual no Acre), construídas de forma conjunta com as lideranças indígenas, que protejam o acesso, o uso, a proteção e a repartição de benefícios associados aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, relacionados à ayahuasca e demais medicinas, bem como seu transporte e circulação em prol do interesse dos povos indígenas;
*Demandamos que instituições das áreas da saúde, judicial, penal e de pesquisa trabalhem com ética, respeitando os valores, os conhecimentos, a propriedade intelectual e os direitos dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada e aprovação expressa pelos povos, como rege o Acordo Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Declaração das Nações Unidas dos Direitos dos Povos Indígenas, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho Sobre Povos Indígenas e Tribais e a Convenção de Diversidade Biológica, de boa fé e com a participação de advogados, pesquisadores e antropólogos indígenas;
*Concordamos com a criação de uma plataforma (site) na internet de comunicação para acolher denúncias, denunciar e criar constrangimento moral e institucional, gerando ações legais e risco reputacional para as empresas farmacêuticas, instituições públicas, de pesquisa etc., que não respeitem a ética ao explorar os conhecimentos indígenas e seu patrimônio cultural, genético e intelectual, além de informar a sociedade com o objetivo de conscientizar sobre os limites éticos;
*Concordamos com a elaboração de um protocolo de consulta biocultural que reconheça a ayahuasca enquanto conhecimento tradicional indígena ancestral, com objetivo de proteger e valorizar, promovendo justiça, reparação e soberania indígena, conforme a Constituição Brasileira prevê em seu Artigo 231;
*Esclarecemos que, no caso de um protocolo de consulta e outras tomadas de decisões referentes a cada território, todo o coletivo de um povo precisa ser consultado, nas suas bases, de acordo com sua organização social e política;
*Reafirmamos o valor da atuação das mulheres indígenas e suas trajetórias como lideranças espirituais e mestras da tradição. Reconhecemos e respeitamos a riqueza de diferentes vivências das mulheres de cada povo. Os saberes, a força espiritual e as práticas de cuidado das mulheres unem a juventude, os mais velhos e toda a comunidade para o uso responsável das medicinas e demais práticas e saberes tradicionais. Nos comprometemos com a participação das mulheres nas conferências, nas decisões e na composição do conselho de lideranças espirituais indígenas e reconhecemos a importância de seus protagonismos
*Nos solidarizamos e compartilhamos a dor e a indignação sofrida por nossos parentes indígenas ao redor do mundo que tem seus direitos violados por autoridades de vários países, muitas vezes enganados, privados de sua liberdade por compartilharem práticas, medicinas e objetos tradicionais;
*Temos clareza de quem somos e de nosso objetivo de união dos povos indígenas. Assim, concordamos com a necessidade de criar um Conselho de Lideranças Espirituais Indígenas, formalmente registrado, com as seguintes frentes de ação:
- Trabalhar juntos na criação de um código de ética sobre o uso responsável da ayahuasca, a partir da ética de cada um dos povos detentores dos conhecimentos tradicionais dessa medicina e instruir as novas gerações;
- Realizar reuniões regulares, construir comunicados e relatórios periódicos, para manter as comunidades indígenas informadas e trabalhar com transparência; Promover ações dentro dos territórios, como a realização de encontros locais e regionais sobre as discussões realizadas nas conferências;
- Contemplar a participação de povos indígenas da Amazônia brasileira, além do Estado do Acre, que são igualmente detentores originários desse patrimônio;
- Considerar que este é um primeiro passo para que os povos e comunidades possam manifestar seu interesse de participar do Conselho de Lideranças Espirituais Indígenas, a partir da definição de seus códigos de ética e em acordo com o código de ética estabelecido ao longo das Conferências Indígenas da Ayahuasca;
- Atuar sem exclusão ou discriminação, ter força para tecer os fios da nossa diversidade para criar uma união, como um chamado aos líderes espirituais indígenas, conhecedores e guardiões das medicinas tradicionais, especialmente os povos mais vulneráveis, com um olhar também para os povos de recente contato. Assim, nos empoderarmos como povos soberanos, autônomos e plurais;
- Ter como prioridade proteger a ayahuasca comercializada, seja respeitada e assegurada nos territórios dos povos indígenas no Brasil e no mundo;
- Dialogar com as lideranças nos territórios para proteção das comunidades e fortalecimento cultural, especialmente entre os jovens. Além disso, cobrar a responsabilidade do poder público nas ações de proteção e segurança pública, com vistas à solução dos problemas que enfrentamos;
- Dialogar com as comunidades, especialmente os jovens, sobre os riscos que envolvem a exposição nas mídias sociais e as parcerias em viagens, encontros e visitas;
- Orientar os parceiros não indígenas sobre o seu papel e o compromisso ético que envolve ter acesso aos rituais tradicionais e as medicinas indígenas, para evitar a exploração, uso indevido de imagens, abusos e crimes;
- Dialogar e sensibilizar as lideranças espirituais para contribuir nos debates das conferências, apoiar os seus trabalhos em prol dos princípios éticos de seu povo ou de sua comunidade, reconhecendo e respeitando a ética tradicional dos pajés, curandeiros, rezadores e parteiras, e a ética ancestral com autonomia;
- Comunicar as reflexões e os debates junto aos povos indígenas, a nível nacional e internacional, em prol do respeito da grande diversidade cultural da ayahuasca, seus povos e territórios.
- Divulgar para as comunidades indígenas os registros das conferências e criar canais de comunicação para formação e orientação;
- Formar uma equipe técnica e de assessoria jurídica para intermediar e dialogar com instituições públicas e privadas sobre as situações de conflito com relação às medicinas e em casos de apropriação cultural em defesa dos povos indígenas;
- Promover um diálogo diplomático de ordem nacional e internacional em todas as instituições e instâncias no Brasil e no mundo;
- Articular, representar e fiscalizar junto às instituições nacionais e internacionais para a construção, ampliação e fortalecimento das legislações, políticas públicas e procedimentos administrativos em prol da proteção, salvaguarda e garantia do direito indígena sobre a ayahuasca;
- Dialogar com organizações indígenas de natureza semelhante ao Conselho de Lideranças Espirituais Indígenas em outros países da Amazônia, para articular ações conjuntas em âmbito internacional;
- Apoiar a juventude e fortalecer espaços de representação e articulação, engajadas nos governos e outras instâncias, também diplomáticas, como a Organização das Nações Unidas, Organização Mundial da Propriedade Intelectual, Conselho Nacional de Política Indigenista, Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Cultura, Ministério dos Povos Indígenas, Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério das Relações Exteriores, Conselho Federal de Medicina, entre outras;
- Atuar junto ao Ministério da Saúde e aos comitês de ética das universidades em torno de projetos de pesquisa sobre a ayahuasca e outras medicinas tradicionais que não mencionam a necessidade de consulta aos povos indígenas;
- Contribuir na avaliação da viabilidade das pesquisas propostas nos territórios sobre as medicinas e o consulta aos povos indígenas; universo da cultura que as envolvem, considerando em primeiro lugar a soberania de cada um dos povos, em acordo com os procedimentos legais vigentes;
- Demandar que o trabalho de pesquisa que envolva conhecimentos tradicionais dos povos indígenas da ayahuasca e outras medicinas a ela associadas, deve envolver a aprovação dos povos indígenas detentores de seus conhecimentos ancestrais em seus territórios, em respeito aos usos, costumes e práticas tradicionais de cada povo, com foco no respeito aos protocolos e legislação já citada;
- Auxiliar na disseminação de informações sobre os cuidados necessários para proteger as lideranças espirituais indígenas que realizam rituais e esclarecer sobre as interações medicamentosas e casos em que a ayahuasca não deva ser administrada;
- Articular junto ao Ministério da Cultura, a implementação das políticas de proteção e salvaguarda do patrimônio cultural referente aos povos indígenas, suas medicinas, conhecimentos tradicionais e patrimônio genético culturalmente associado;
Considerando que as declarações comuns e encaminhamentos presentes nessa carta envolvem medidas complexas derivadas, a um só tempo, da autodeterminação de cada povo originário, assim como da articulação entre nós, excepcional e transitoriamente tais medidas imediatas serão implantadas pelo Instituto Yorenka Tasorentsi até a criação e institucionalização formal do Conselho de Lideranças Espirituais Indígenas.
Observação: O termo Ayahuasca utilizado na carta não substitui as terminologias apresentadas por cada povo participante, tais como Rami, Kamarāpi, Uni, Huni, Dispāni hew, Tsību, Yage, Gaapi, Kahpi, Hayakwaska, entre outras. No entanto, desde a primeira Conferência foi acordada a utilização deste termo de forma genérica, compreendendo todas as demais nomenclaturas.