Manaus, 18 de novembro de 1987

Dos Povos Indígenas para os Constituintes

               CARTA DOS POVOS INDÍGENAS DA
               FAIXA DE FRONTEIRA AOS SENHORES
               CONSTITUINTES

               Senhores Constituintes,

              Nós, representantes de 21 nações indígenas da fronteira norte da República Federativa do Brasil nos reunimos na cidade de Manaus, nos dias 16, 17 e 18 deste mes de novembro, para discutir entre outras coisas, os dois últimos decretos do Presidente Sarney, o chamado Projeto Calha Norte e os artigos do Projeto da Comissão de Sistematização, que decide sobre nosso destino e o nosso futuro.

              Depois de tres dias de discussões e diante da situação tão grave que ameaça a nossa própria sobrevivência, nós resolvemos escrever esta carta e indicar uma comissão para entregá-la pessoalmente em Brasília.


              O Projeto elaborado pelo Relator da Comissão de Sistematização, Constituinte Bernardo Cabral, na parte que trata sobre tij, nós, índios é um Projeto muito ruim, que fere os direitos seculares dos Povos Indígenas. É um Projeto de Constituição injusto conosco.


              Durante 400 anos nós fomos escravisados, humilhados, assassinados. Nossas terras foram sendo roubadas, nossas casas queimadas. Muitas nações foram exterminadas e as que sobreviveram tiveram suas populações reduzidas.
              Agora o Brasil está fazendo uma nova lei. Nós ficamos cheios de esperança, pensando que nossa vida ia melhorar, acreditando que finalmente o cantinho de terra que sobrou para nós iria ser garantido.


              O Projeto da Comissão de Sistematização mostrou que uma vez mais nós fomos enganados. Esse Projeto em um artigo diz “reconhecer aos índios seus direitos originarios”, com a mão direita tira de nós o que deu com a mão esquerda. Porque nos artigos seguintes permite a exploração das riquezas minerais em nossas terras e ameaça no artigo 264, que “os índios com elevado estágio de aculturação” não tem nenhum direito, sem falar que no §1º do art.261 considera os índios como absolutamente incapazes.


              Nós não sabemos o que é “elevado estágio de aculturação”, mas estamos angustiados e desesperados, porque sabemos, por experiência própria, que isso vai ser usado contra nós, para tentar dar um golpe final à nossa forma de vida.


              Quem vai dizer quando um povo está em “elevado estágio de aculturação”? Que critérios serão usados? Que interesses estão por detrás de tudo isso?

              A questão fica clara se nós analisamos o que está acontecendo agora.

              A situação é angustiante porque neste momento o Projeto Calha Norte está entrando em nossas terras com o objetivo de colonizar-nos e de aculturar-nos. Se pelo Projeto de Constituição os índios ditos aculturados perdem seus direitos, e se o Projeto Calha Norte pretende nos aculturar, então o Projeto Calha quer acabar com os nossos direitos.

              O Projeto Calha Norte está desrespeitando as nossas comunidades, as estradas estão cortando nossas terras, as escolas oficiais estão destruindo nossas escolas comunitárias, desrespeitando nossa língua, nossos costumes, nossa tradição e nossa forma de viver.

              Mortes, prisões, espancamentos , remoção de famílias para construção de quartéis, sedução e engravidamento de índias por militares, destruição de nossas casas, estão ocorrendo em Roraima, no Rio Negro e no Alto Solimões, como resultado do Projeto Calha Norte. As outras áreas de fronteira também estão ameaçadas.

O Projeto Calha Norte até agora só tem causado prejuízos para os índios e está acabando com as nações de faixa de fronteira. Esse projeto foi feito sem nos consultar, sem consultar ninguém.

              O governo diz que é por causa da segurança nacional, para defender as fronteiras do Brasil. Mas se o Brasil é grande, hoje, é porque nós defendemos o território, nós fomos e continuamos ser a muralha do Brasil.

              Em setembro deste ano, o Presidente Sarney assinou dois decretos – 94.945/87 e 94.946/87 – que nos prejudica ainda mais, porque torna praticamente impossível a demarcação das nossas terras e determina a criação de colônias indígenas na terra do que eles chamam de “população indígena aculturada.

              Senhores Constituintes, nós representantes das nações indígenas da faixa de fronteira não queremos os decretos que o Presidente Sarney assinou, não queremos colônias indígenas, não queremos o Projeto Calha Norte, não queremos uma Constituição contra os índios.

              Nós queremos viver em paz, nós queremos a demarcação de nossa terra. Nós queremos guardar a nossa forma de ser cidadão brasileiro, que é mantendo as nossas línguas e as nossas culturas, a nossa forma de vida, o que só ajuda a tornar o país ainda mais rico culturalmente.

              Nós queremos uma Constituição justa com as nações indígenas, que respeite e garanta os nosssos direitos. Nossa lei é aquela apresentada no ante-projeto da Comissão da Ordem Social que nós mesmos assinamos e concordamos.

              Senhores Constituintes não entrem na história do Brasil como carrascos dos índios, não permitam que o Brasil continue a tratar os índios com tanto desprezo. Não permitam que o massacre continue. Os senhores podem decidir sobre o nosso destino. Aprovem uma Constituição justa, que pague a dívida histórica que o Brasil tem com os índios.

Assinam abaixo.

Fonte: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/carta-dos-povos-indigenas-da-faixa-de-fronteira-aos-senhores-constituintes

Original: 1987.11.18 Dos Povos Indigenas para os Constituintes

 

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